O preço da energia elétrica no Brasil aumentou consideravelmente após as privatizações das companhias. Segundo levantamento do MAB, nos últimos dez anos a tarifa de energia aumentou 400%, o que significa que o seu valor cresceu mais que o dobro do aumento da inflação. Nos últimos quatro anos, o preço da energia aumentou 100% e a inflação 50%.
Nesta semana, de 07 a 10 de outubro, ocorre no Centro de Convenções de Olinda, em Pernambuco, o XVIII Seminário de Distribuição de Energia (SENDI). Este evento é promovido pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (ABRADEE), coordenado pela Companhia Energética de Pernambuco (CELPE) e, a despeito das opiniões oficiais sobre assunto, constitui uma típica manifestação histórica da ironia estrutural do modo de produção capitalista. Em tempos de decretação de crise financeira em Wall Street e de anunciação da queda do neoliberalismo, aqui, em terras nossas, o Consenso de Washington se refaz nas contas de luz. Vejamos.
O Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), sob o apoio de organizações como a Via Campesina e a Assembléia Popular, deu início à campanha “O preço da luz é um roubo”, contra os altos preços de energia elétrica. Na justificação dos motivos da campanha, o MAB apresenta alguns dados relevantes que reproduzirei no decorrer do texto. Tais dados encontram-se no sítio eletrônico do Movimento.
A naturalização da matriz energética dominante
De antemão, é de se notar que o processo histórico do desenvolvimento econômico nacional engendrou a priorização de um modo específico de produção energética, qual seja, o hidráulico. A energia de origem hidráulica corresponde a 85,4% da produção energética brasileira. Apesar de ser uma fonte renovável de energia – o que o difere do petróleo, por exemplo – o sistema hidráulico traz conseqüências ambientais incorrigíveis, dentre elas a devastação de ecossistemas e o deslocamento de comunidades e, por vezes, de cidades inteiras em razão das inundações necessárias às formações de barragens.
O argumento central apresentado em defesa desse sistema refere-se ao aproveitamento do potencial hidráulico brasileiro decorrente da quantidade de rios no país. Tal argumento compõe o arsenal discursivo da hegemonia que se vale da naturalização como caminho para atingir o consenso. “Ora, já que naturalmente possuímos rios, naturalmente viveremos de hidrelétricas”. Soma-se à naturalização, a cultura do terror. “Sem as hidrelétricas, a energia acabará”, terrorismo retórico este que repercute sobremaneira na imposição mercadológica da “necessidade” – também naturalizada – do aumento da tarifa de energia elétrica.
Outro argumento prestado em defesa da hidroeletricidade diz respeito aos baixos custos dessa forma de produção energética. A este argumento, bastam os números apresentados pelo MAB. O custo da produção de um kilowatt de energia através dessa fonte é de R$ 0,06 (seis centavos), no entanto, nós –“ cidadãos e cidadãs brasileiros(as)” – pagamos em média R$ 0,30 (trinta centavos) por kilowatt. Em estados como Minas Gerais e Goiás esse valor chega a R$ 0,60 (sessenta centavos). Essa desproporção entre o curso e o preço diz de uma concepção da energia e, de resto, da natureza como um todo, que elimina a humanidade do meio ambiente, ou a energia como um direito humano, e encara energia e natureza estranhamente na condição de mercadoria.
Em descompasso com o “baixo custo” da hidroeletricidade surge o fato de que o Brasil está entre os países em que os preços da energia são mais altos. Segundo um cálculo desenvolvido pelo Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico ILUMINA a partir da confrontação do preço da energia com o poder de compra das moedas, verificou-se que o Brasil está entre os cinco países de preços mais elevados. Nossos preços são superiores aos do Japão, da Alemanha, do México, da Coréia, da Espanha, do Reino Unido e da França, isso para citar apenas algumas nações. Em média, nós pagamos o dobro do valor que um(a) estadunidense paga pela energia elétrica.
As cifras energéticas: quem paga mais?
A divisão internacional do trabalho, segundo o qual as classes populares dos países periféricos são exploradas por um patronato cujo rosto elas desconhecem, repercute numa divisão internacional da energia. Não é por “eficiência”, ou “competência” que os países centrais pagam menos pela energia. Pagam menos porque justamente alguém paga mais. A CELPE – Companhia Energética de Pernambuco – foi vendida ao grupo espanhol Neoenergia no ano 2000. Se o Brasil ocupa a quinta posição na lista dos países com os preços mais altos de energia, a Espanha está nesta mesma lista no décimo sétimo lugar. Por certo a explicação do fenômeno não se encerra nessa analogia, mas está aí uma questão a priori emblemática.
O preço da energia elétrica no Brasil aumentou consideravelmente após as privatizações das companhias. De acordo com os dados oferecidos pelo MAB, nos últimos dez anos a tarifa de energia aumentos 400%, o que significa que o seu valor cresceu mais que o dobro do aumento da inflação. Nos últimos quatro anos, o preço da energia aumentou 100%, a inflação 50%. Afirmam as conclusões da tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo pelo engenheiro José Paulo Vieira: o povo brasileiro paga, de energia, quinze bilhões de reais a mais por ano.
É possível ainda dizer que as classes populares pagam mais caro que as grandes empresas. O Governo Federal, através da Eletronorte, chegou a vender a Alumar e a Albrás, duas empresas multinacionais, grande quantidade de energia sob o valor de R$ 0,06 (seis centavos) o kilowatt. O setor industrial é o que mais consome energia elétrica no país. Quase metade de toda a energia produzida é utilizada pela indústria e perto de 550 (quinhentos e cinqüenta) grandes consumidores gastam cerca de 20% da energia elétrica. Nas palavras do MAB, “As empresas que gastam muita energia são chamadas de eletro-intensivas e são principalmente as exploradoras de ferro, alumínio e celulose”. Essas indústrias, entretanto, são as que menos produzem empregos. A mesma quantidade de energia engendra numa indústria de alimentos 70 (setenta) vagas e numa indústria de metais apenas duas.
Os números acima apresentados procuram desconstruir aqueles argumentos de legitimação do mercado segundo os quais as indústrias geram empregos e a tecnologia serve ao desenvolvimento do país, que mais se aproximam de um tecnologismo negador do processo histórico e das ideologias do que de reais soluções para os problemas sociais nacionais. A lógica reverberada na atual conjuntura do modo de produção energética não é outra senão a do neoliberalismo. Nela, o Estado – reciprocamente determinado pelo capital – concede ao “privado” a competência para gerir o que é “público” e lucrar a partir do que para as classes populares é fundamental. Em verdade, o “público” não deixa de ser um bem simbólico sob conflito, conflito este do qual as multinacionais costumam sair vitoriosas.
No dia 8 de outubro, o presidente da ABRADE, Luís Carlos Silveira Guimarães “explicou” – para utilizar o termo presente no blog “Acerto de Contas” – em coletiva com a imprensa, que o preço do dólar tem um impacto de 6% na conta de energia elétrica que chega ao/à consumidor(a). O presidente do Neonergia, Marcelo Correa, no entanto, disse, ao comparar a crise financeira estadunidense a um paciente que sofreu infarto, que o momento era de espera. Ele pode esperar. Wall Street parece não poder. Mas se engana quem subestima a capacidade de readaptação da lógica do capital. Da espera do Neoenergia o lucro virá. Da pressa de Wall Street o lucro também virá. O cerne permanece o mesmo: as classes populares continuam a pagar a conta da desigualdade fundante da sociedade de classes.
(Por Roberto Efrem Filho, Carta Maior, 09/10/2008)
* Roberto Efrem Filho é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)