Três anos após o presidente Hugo Chávez ter expulsado missionários norte-americanos da Amazônia venezuelana, acusando-os de fazer proselitismo junto a tribos remotas para acobertar atividades de espionagem, aumenta aqui o ressentimento em relação àquilo que alguns líderes tribais chamam de uma negligência oficial que teria provocado a morte de dezenas de crianças e adultos indígenas.
Alguns líderes dos ianomamis, uma das maiores tribos que habitam as florestas equatoriais da América do Sul, afirmam que 50 pessoas nas suas comunidades na Amazônia morreram desde a expulsão dos missionários em 2005 devido à falta periódica de remédios e combustível, bem como à ausência de transporte confiável da selva para unidades de saúde.
O governo de Chávez repele essas acusações e afirma que nunca se investiu tanto em programas sociais para os ianomamis. O investimento é parte de um plano mais extenso com o propósito de garantir maior controle militar e social sobre áreas da selva amazônica que são tidas como essenciais para a soberania da Venezuela.
Os líderes ianomamis estão entrando em um debate político a respeito de como as autoridades reagem aos desafios na área de saúde pública enfrentados pelos ianomamis e outras tribos amazônicas. Em recentes entrevistas concedidas aqui, autoridades do governo insinuaram que os ianomamis podem estar exagerando as suas alegações com o objetivo de receber mais recursos do governo e reduzir a autoridade deste na Amazônia.
Enquanto isso, as queixas dos ianomamis são feitas em meio a preocupações crescentes na Venezuela em relação aos serviços de saúde às populações indígenas, após um escândalo em agosto devido à resposta lenta do governo a uma misteriosa doença que matou 38 índios waraó no nordeste do país.
"Este governo faz um grande show, afirmando que ajuda os ianomamis, mas uma coisa é a retórica e outra é a realidade", critica Ramon Gonzalez, 49, um líder ianomami da vila de Yajanamateli que recentemente viajou até Puerto Ayacucho, a capital do Estado venezuelano do Amazonas, a fim de solicitar a oficiais militares e médicos civis a melhoria dos serviços de saúde.
"A verdade é que a vida dos ianomamis ainda é considerada algo sem valor", acusa Gonzalez, que foi convertido ao cristianismo pela New Tribes Mission, um grupo da Flórida que foi expulso da Venezuela em 2005. "Os barcos, os aviões, o dinheiro, tudo isso é para os criollos, e não para nós", queixa-se ele, utilizando um termo que designa os venezuelanos que não são de etnia indígena.
Os líderes ianomamis oferecem uma imagem da tribo bem diferente daquela encontrada nos livros de antropologia, que muitas vezes a retrata em estruturas rousseaunianas habitadas por índios de faces pintadas e usando tangas.
Existem 26 mil ianomamis na Floresta Amazônica, na Venezuela e no Brasil, onde eles vivem como caçadores semi-nômades e cultivadores de culturas como a mandioca e a banana.
Eles continuam vulneráveis a doenças contra as quais tem baixa imunidade, incluindo enfermidades respiratórias e variedades de malária resistentes a medicamentos. Em Puerto Ayacucho, eles podem ser vistos caminhando pelas ruas cheias de automóveis, usando camisetas e calças jeans largas e manuseando telefones celulares.
No início desta década, a comunidade antropológica foi abalada pelas alegações feitas pelo escritor Patrick Tierney de que acadêmicos norte-americanos iniciaram e agravaram uma epidemia de sarampo que no final da década de 1960 matou centenas de ianomamis.
E alegações de negligência médica emergiram antes que Chávez expulsasse cerca de 200 missionários norte-americanos. Eles forneciam assistência de saúde aos ianomamis, com remédios doados pelos Estados Unidos, e transportavam os índios para clínicas em pequenos aviões, utilizando dezenas de pistas de pouso abertas na floresta.
O Nova Tribes, o mais famoso dos grupos expulsos, negou as acusações de espionagem feitas por Chávez, mas recusou-se a tecer comentários para esta matéria, citando as relações tensas entre a Venezuela e os Estados Unidos.
Gonzalez e outros líderes ianomamis forneceram os nomes de 50 pessoas, incluindo 22 crianças, que segundo eles morreram de doenças como malária e pneumonia depois que as forças armadas limitaram os vôos civis e dos missionários às aldeias dos índios em 2005. As forças armadas substituíram as operações dos missionários com a sua própria frota de pequenos aviões e helicópteros, mas os críticos afirmam que as missões militares são infreqüentes e não atendem aos casos de emergência.
Os líderes ianomamis dizem que tornaram a lista pública depois que a mostraram a autoridades de saúde e militares e receberam delas uma resposta fria. "Eles nos disseram que deveríamos ser gratos pela ajuda que já estão nos fornecendo", conta Eduardo Mejía, 24, um líder ianomami da aldeia de El Cejal.
O oficial militar responsável pelo transporte no interior do Estado venezuelano do Amazonas, o general Yomar Jose Rubio, da 52ª Brigada de Infantaria em Puerto Ayacucho, não respondeu aos pedidos para que fizesse comentários sobre o assunto. Mas outras autoridades daqui questionaram as alegações dos índios.
"Os missionários estavam na Amazônia havia 50 anos, criando em alguns lugares populações indígenas dependentes, de forma que a retirada deles tinha necessariamente que resultar em efeitos positivos e negativos", argumenta Carlos Botto, funcionário do Caicet, um instituto governamental de pesquisas especializado em doenças tropicais.
"Mas não podemos nos esquecer de que os ianomamis e outros grupos indígenas aprenderam como exercer pressão sobre o governo para receberem alimentos e outros benefícios", diz ele. "Isto não significa que não haja problemas em relação ao fornecimento de saúde a eles, mas é preciso ter cuidado com alegações desse tipo".
A disputa fez também com que as atenções se concentrassem em um programa inovador de governo criado no final de 2005, o Plano de Saúde Ianomami. Com uma equipe de 46 pessoas, ele treina alguns ianomamis para atuarem como agentes de saúde nas suas aldeias, e envia médicos à selva para que estes forneçam serviços de saúde em comunidades remotas.
"Temos 14 médicos na nossa equipe, sendo que 11 deles foram treinados em Cuba para trabalhar em áreas de selva", diz Meydell Simancas, 32, um especialista em doenças tropicais que dirige o programa em um complexo situado aqui que já pertenceu à New Tribes Mission.
Simancas afirma que mais de 20 ianomamis foram treinados para atuar como paramédicos, e que as estatísticas revelam que a atuação dos médicos provocou o aumento do número de vacinas aplicadas e dos programas de controle da malária e da cegueira dos rios em todo o Amazonas.
Os líderes ianomamis que reclamam da negligência reconhecem as boas intenções de Simancas. Mas eles afirmam que graves problemas persistem quanto à coordenação militar de acesso aos médicos e aos remédios. Tanto os ianomamis quanto os médicos do governo dependem das forças armadas para o transporte entre a cidade e a selva.
Simancas sugere que as alegações de que houve dezenas de mortes originaram-se na aldeia de Coshilowateli, onde um grupo de evangelistas norte-americanos, a Padamo Mission, lutou contra a expulsão, argumentando que os líderes não poderiam ser expulsos por terem cidadania venezuelana.
"Existem dados subjetivos que podem valer a pena investigar", afirma Simancas, referindo-se a Coshilowateli. "Mas eles tiveram origem em uma comunidade em situação de tensão política".
Michael Dawson, líder da Padamo Mission, nega que as alegações de negligência governamental tenham sido exageradas ou politicamente motivadas. Ele diz ainda que elas não tiveram origem em Coshilowateli, mas sim nas aldeias nas quais os ianomamis foram convertidos ao cristianismo por missionários que foram expulsos por Chávez.
"Para eles é fácil simplesmente colocar a culpa em nós, em vez de admitirem que não ajudaram muito os índios", critica Dawson, 53, que nasceu e foi criado entre os ianomamis. "Cada um dos nomes na lista é um caso verificável de emergência no qual foram feitos pedidos repetidos de ajuda até mesmo por meio de aparelhos de radioamadorismo".
Os líderes ianomamis denunciam aquilo que segundo eles é um comportamento generalizado das autoridades, caracterizado pela negligência e pela condescendência. "Eles colocam fotos dos ianomamis em toda parte, em panfletos turísticos, em saguões de aeroportos e até mesmo nas ambulâncias de Puerto Ayacucho", diz Andres Gonzalez, 38, um líder ianomami. "É assim que eles nos querem, em fotografias, sem posições de poder".
Enquanto isso, os ianomamis que conseguem ter acesso a tratamento de saúde aqui permanecem em uma instalação pobre, que já pertenceu aos missionários estrangeiros que foram expulsos em 2005. No quintal da instalação, mulheres cozinham mandioca em panelas de metal colocadas sobre uma fogueira, à sombra de uma mangueira.
Os homens estão deitados em redes penduradas em um barracão sem paredes. Pedro Camico, 36, conta que viajou de El Cejal até aqui, depois que um de seus filhos morreu de malária. O nome da criança, uma menina, não faz parte da lista de 50 mortos apresentada pelos líderes ianomamis. Ele fica ao lado do filho, Misael, de quatro anos, que também está com malária, mas que poderá se recuperar devido aos remédios que está recebendo.
"Tenho uma filha morta e um filho vivo. Mas o que importa é que estou aqui com ele", afirma Camico. "Sou um dos que tiveram sorte".
(Por Simon Romero, The New York Times, UOL, 07/10/2008)