Há quatro anos, um grupo de 23 famílias Caingangues ocupa uma área de 27 hectares no Morro do Osso, uma região no sul de Porto Alegre conhecida por ser, antigamente, lugar de passagem dos índios que ali criaram um cemitério histórico. No entanto, alguns órgãos públicos tentam tirar os índios do lugar alegando que essa ocupação é uma ameaça ao meio ambiente do Morro do Osso.
“A questão ali não é realmente preservação ambiental. É um lugar onde estão se concentrando moradores de classe média alta por ser uma região muito bonita e ter uma visão ampla de todo o Guaíba”, contou-nos Roberto Liebgott, em entrevista, realizada por telefone, à IHU On-Line. Desde que chegaram ao local, Liebgott acompanha a situação e a luta dos índios Caingangues. O pesquisador também falou sobre demarcação de terras aqui no estado e sobre a condução desse caso do Morro do Osso.
Roberto Liebgott é coordenador do Conselho Indigenista Missionário - CIMI - da Região Sul do Brasil.
Confira a entrevista.
Os índios Caingangues que ocupam o Morro do Osso, em Porto Alegre, há quatro anos são uma ameaça ao parque natural?
Roberto Liebgott – Eles o ocuparam no dia 9 de abril de 2004, numa sexta-feira santa, pois lembro bem do dia. A área que foi estabelecida como de preservação propriamente são de 27 hectares. No entanto, há ainda 350 hectares de área não ocupada que estava sendo preparada para edificação de condomínios de luxo. Quando os índios fizeram a ocupação em 2004, grande parte da área que eles alegam ser de preservação já estava demarcada para a construção de condomínios. Então, os índios ocuparam, detectaram essa demarcação e fizeram a denúncia ao Ministério Público Federal, ao Ministério Público Estadual e também à Câmara de Vereadores. Desde então, esse processo de loteamento da área foi paralisado. Portanto, desde que os Caingangues ocuparam o Morro do Osso acabaram revertendo um processo de ocupação desse espaço por condomínios de luxo, que estava sendo sistemático nessa região.
Então, a principal questão não é a preservação ambiental?
Liebgott – A questão ali não é realmente preservação ambiental. É um lugar onde estão se concentrando moradores de classe média alta por ser uma região muito bonita e ter uma visão ampla de todo o Guaíba.
Como os índios agirão caso a Funai afirme que a área do Morro do Osso é de preservação e solicitarem a retirada deles?
Liebgott – Uma área de preservação não necessariamente impede que seja também uma área indígena. Se comprovado no estudo antropológico que ali de fato se configura como um espaço territorial de ocupação dos índios, ele necessariamente precisa ser demarcado, o que não significa dizer que a preservação deixará de existir. Então, depende agora desse estudo que a Funai se comprometeu em realizar. Uma coisa não é incompatível com a outra. Existem discussões em algumas regiões dizendo que os índios não preservam o meio ambiente. Há outras que dizem que os índios, quando ocupam uma área, deixam que esse espaço se torne em poeira e mata, alegando que eles não produzem. Então, depende do interesse das elites da região para se criar um discurso contrário aos interesses indígenas.
Que outras áreas consideradas de preservação natural também são reivindicadas pelos índios aqui no Rio Grande do Sul?
Liebgott – No entorno de Porto Alegre, há algumas áreas para serem demarcadas para os índios Guaranis, como, por exemplo, o Parque de Itapuã. O grupo já foi instalado e certamente em breve os trabalhos antropológicos serão instalados, assim como os estudos antropográficos etc. Existem também outras áreas pleiteadas na região de Passo Fundo, como a Mata Castelhana. Há várias áreas que foram instituídas como de preservação ambiental, mas que também fazem parte de territórios indígenas.
Como está a situação das pessoas que estão vivendo no Morro do Osso?
Liebgott – São 23 famílias que vivem da produção de artesanato. Esse artesanato é confeccionado no Morro do Osso e é vendido em feiras da cidade ou no centro de Porto Alegre. Basicamente, a fonte de subsistência dessas famílias é o artesanato. Assim como a de centenas de outras famílias indígenas, que também moram ou em Porto Alegre ou no entorno dessa cidade, pois não existem mais espaços de produtividade agrícola. Por isso, a fonte de subsistência passa necessariamente pela comercialização dos produtos que eles mesmos confeccionam.
Roberto, mas como está a questão da educação das crianças que vivem no Morro do Osso?
Liebgott – As crianças Caingangues do Morro do Osso têm já uma escola dentro da própria comunidade. Nela, que é diferenciada, eles aprendem primeiro na língua caingangue e, depois de um período de quatro anos, passam a integrar também escolas públicas na região do entorno do Morro do Osso. Assim, algumas crianças ainda freqüentam a escola dos índios e outras a escola dita normal.
Com base em que os índios descobriram que o Morro do Osso abriga um cemitério indígena?
Liebgott – A história do Morro do Osso é bem antiga. Existem estudos de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que comprovam que historicamente os índios passaram por essa região, e o Morro do Osso seria um ponto de passagem, onde eles faziam suas paradas para confecção de produtos, tratamentos médicos etc. Nesse local, também foi constituído um cemitério, e a própria prefeitura de Porto Alegre, ao longo dos anos, para fazer a divulgação do Morro do Osso, se utilizava de afirmações de que ali tem constituído antigos sítios arqueológicos e também cemitérios indígenas. Por isso, deu-se o nome à região de Morro do Osso, ou seja, em função das ossadas que foram encontradas ali nesse local.
Como está a situação da demarcação de terras indígenas aqui no estado?
Liebgott – Aqui no estado, existem perspectivas de demarcação para os povos Caingangues e Guaranis. Existem muitas promessas por parte da Funai, através de grupos de trabalho para fazer o procedimento demarcatório, para identificar as áreas. No entanto, há uma morosidade muito grande. Há pelo menos 22 áreas Guaranis que precisam ser regularizadas. Grande parte dessas áreas estão entorno de Porto Alegre, como nas cidades de Barra do Ribeiro, Viamão, Guaíba, Osório. Há necessidade para que haja maior mobilização entre os índios para que pressionem a Funai e, assim, esses grupos de trabalho sejam constituídos.
E como essa situação do Morro do Osso está sendo conduzida e como deverá ser solucionada em sua opinião?
Liebgott – Em nossa opinião, cabe à Funai a criação do grupo de trabalho para proceder com a identificação e, então, comprovar se de fato é uma área de ocupação tradicional ou não. Caso seja uma área de ocupação tradicional, o procedimento é muito bem definido pela constituição, ou seja, a área precisa ser demarcada e passa a ser de usufruto dos índios, nesse caso dos Caingangues. Caso não tenha essa comprovação da ocupação tradicional, o poder público precisa negociar com a comunidade a perspectiva de reassentamento em uma hora onde condições dignas de vida e sobrevivência sejam garantidas. Para que, afinal, tenham perspectivas de futuro. A comunidade do Morro do Osso está muito tranqüila. Os índios têm consciência e noção dos seus direitos e isso é muito importante. Existe na contramão disso uma pressão intensa por parte dos moradores da região e por parte da prefeitura de Porto Alegre que se nega a reconhecer aos índios esse direito. Aguardamos que a Funai proceda com os estudos para que a área seja caracterizada como região indígena.
(IHU, 06/10/2008)