Em tempos em que as manchetes dos jornais são tomadas com a informação mal apurada de que o INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) é o responsável pela maior parte dos desmatamentos do país, foi um alívio a estréia do documentário “Mataram irmã Dorothy” com debate mediado pelo ator Wagner Moura na terça, dia 30, no Festival de Cinema do Rio.
Alívio porque, enfim, um filme com informações sobre um tema que está selando o destino da Amazônia, fronteira agrícola disputada a ferro e fogo, obviamente sem o grande charme narrativo dos grandes Westerns, que, afinal de contas, foi o jeito que os norte-americanos inventaram de celebrar a sangrenta conquista do Oeste deles. Infelizmente, no nosso caso, os esfarrapados sem-terra não são vistos como heróis nem são tão charmosos quanto os cowboys deles. Infelizmente, nossos heróis e heroínas, como irmã Dorothy, quando ficam conhecidos, já é porque se tornaram mártires.
Além disso, seria pedir muito que o filme explicasse que os responsáveis diretos sobre essa realidade são oriundos do incensado “agronegócio” da soja e da carne, que junto com os minérios explorados pela privatizada Vale do Rio Doce são os atuais filões da carreira exportadora que o Brasil repete em maior ou menor grau desde 1500 na esteira das altas cotações do mercado mundial. Afinal, desde então, somos exportadores de matéria-prima e exploradores predatórios especializados em deixar à margem de seus surtos desenvolvimentistas uma imensa população de pobres agricultores humildes, freqüentemente obrigados a colocar a trouxa nas costas quando aparecem homens armados com falsos registros de cartório reivindicando a terra que em viviam desde sempre.
O interessante do filme é que sua história praticamente foi se desenrolando diante da própria equipe de filmagens, liderada pelo diretor norte-americano Daniel Junge, que não tinha idéia de qual ia ser o desfecho dessa trama. O diretor, que começou a filmar exatos 10 dias depois do assassinato, ao acompanhar o irmão de Dorothy em sua viagem para o Brasil, tinha intenção de não fazer um filme sobre uma santa e um bando de homens diabólicos, mas a força dos fatos que ele apura, incluindo-se memoráveis depoimentos dos advogados de defesa dos acusados, acaba depondo contra sua intenção. Isto porque a escandalosa impunidade e devastação retratada pelo filme, promovida por setores vinculados ao latifúndio, à monocultura e à escravidão continua a se reproduzir porque o Sul do país vive de costas e muito distante da Amazônia, como ilustrou comovente depoimento de uma participante do debate. É a desinformação e a falta de presença do Estado na região que permite que bandos de grileiros continuem a queimar a floresta para criar gado, repetindo um.processo de ocupação de terras já denunciado no século XIX por figuras derrotadas da história como José Bonifácio e Joaquim Nabuco.
O interessante do filme é que ele, inclusive, demonstra que tipo de gente hoje em dia anda esgrimindo o argumento da “soberania nacional ameaçada” quando se trata de Terras Indígenas, como a da Raposa Serra do Sol, e do engessamento do desenvolvimento, quando seus interesses são ameaçados pelas reivindicações de posse de quilombolas e caboclos ribeirinhos.
Mas foi no debate, mediado pelo ator Wagner Moura, que classificou a questão da terra como “a mãe dos problemas do Brasil”, onde surgiu à tona depoimentos reveladores dos mundos paralelos que hoje acossam os brasileiros. Uma estudante contou ter feito um estágio de seis meses na Amazônia, onde descobriu surpresa que se sentia mais estrangeira lá do que no exterior. Emocionada, contou a história de Bruna, colega que fez parte do mesmo programa, e que, já formada, decidiu viver na Amazônia para contribuir com os movimentos sociais, mas faleceu recentemente, aos 20 poucos anos, em um suspeito acidente de carro.
No entanto, foi talvez a questão de uma moça da Vila Penha, subúrbio do Rio, que trouxe mais para perto de todos os presentes a compreensão do que se passa na Amazônia e da própria vida de Dorothy. A moça perguntou aos participantes da mesa como continuar lutando quando se enfrenta uma realidade tão violenta como a de seu bairro, onde até a procissão da padroeira tem que ser em determinado horário por conta das ordens dos traficantes.Companheiro das lutas da irmã, o procurador da República Felício Pontes confessou que logo que soube do assassinato da freira - ocorrido no dia em que comemorava-se a criação de uma enorme reserva extrativista (Resex) na Terra do Meio, também no Pará - ele se sentiu tão impotente que achou que não adiantava mais fazer nada. Logo que chegou a Anapu, para o enterro, foi cercado e abraçado pelos agricultores do projeto de desenvolvimento sustentável (PDS), cujas terras custaram a vida de Dorothy. Nesse momento o procurador percebeu que ali estava a energia para ir adiante. Todos ali estavam dispostos a continuar lutando até o fim. Afinal, agora iam ter que matar todos para lhes tomar aquela terra. Um sentimento que só sente quem tem a experiência de participar de um desses combates, geralmente deflagrados sem grandes repercussões, mas que vão delineando o destino da humanidade e deste planeta. Em suma, um sentimento compartilhado por pessoas que tiram grande parte de sua satisfação emocional do fato de se sentirem atores de lutas, às vezes derrotadas, às vezes vitoriosas, mas que implicam a escolha de caminhos voltados para a emancipação humana e não para o lucro individual. Daí talvez venham os laços duráveis de amizade e solidariedade e que, em si, sempre valem a pena cultivar contras as almas que insistem em ficar pequenas.
(Por Débora Lerrer, Brasil de Fato, 06/10/2008)