As cinco áreas protegidas que formam o mosaico da Calha Norte paraense espalham-se por zona de serra amazônica, com algumas cadeias de montanhas que ultrapassam os 700 metros de altura. Seus rios são encachoeirados, correm do Norte em direção ao Sul e subir através deles exige não só muito sacrifício, mas uma razoável dose de paciência e músculos. Que o diga Daniel Santos, pesquisador do Imazon, que enfrentou uma viagem pelo rio Trombetas para levantar pontos de coleta de castanhas utilizados pelos quilombolas de Porto Cachoeira, povoado localizado bem na borda da Floresta Estadual do Trombetas. Santos e dois guias levaram cinco dias para completar a expedição.
Durante todo esse tempo, viram uma onça pintada, bandos de araras, casais de patos selvagens e nem um ser humano. Tudo isso, segundo Santos, em meio a uma paisagem belíssima, dominada por matas altas e muita água. “Nós passamos por 20 corredeiras e entre cinco e dez cachoeiras”, conta. Na maioria das vezes, no braço. “Em certos pontos, até dava para arrastar o barco por varadouros com água. Mas tínhamos que arrastar tudo por terra para transpor os obstáculos”, diz, recordando sua experiência nesse relevo tão acidentado que até hoje serve de proteção natural à biodiversidade da região, desencorajando atividades econômicas e, consequentemente, a ocupação humana.
É bem provável que não haja nem mil pessoas instaladas dentro dos quase 13 milhões de hectares onde o estado do Pará criou, em dezembro de 2006, três Florestas Estaduais, Paru, Faro e Trombetas, a Estação Ecológica do Grão Pará e a Reserva Biológica do Maicuru. “Na Floresta do Trombetas, a densidade populacional é de 0,0126 habitantes por quilômetro quadrado”, informa, com seu jeito rápido de falar, o paulista Roberto Palmieri, pesquisador do Imaflora. Ao longo de duas semanas, ele percorreu os rios Cachorro, Nhamundá e Mapuera para investigar a situação de duas Terras Indígenas, Trombetas-Mapuera e Nhamundá-Mapuera, e a relação de seus habitantes com as Florestas Estaduais do Trombetas e de Faro.
Palmieri já pode se considerar um veterano do mosaico da Calha Norte, que ele frequenta com razoável assiduidade desde meados de 2006, quando se iniciaram os levantamentos preliminares que antecederam a criação das cinco Unidades de Conservação paraenses na Calha Norte. Sua experiência o qualificou para fazer parte da equipe, formada por técnicos do Imazon, Imaflora e Secretaria de Meio Ambiente (SEMA), que conduz as expedições de análise sócio-econômica da área. Elas tiveram início em fins do ano passado. Das nove planejadas, oito já foram realizadas. A última vai visitar o único garimpo detectado na região do mosaico, no rio Jari, bem no limite da Floresta Estadual do Paru com o estado do Amapá. “Tanta investigação sócio-econômica pode soar como bobagem diante de uma densidade populacional que parece ser menor que a da Sibéria”, diz Adalberto Veríssimo do Imazon.
Mas as expedições estão ensinando lições preciosas aos pesquisadores. “Não basta apenas verificar onde essas pessoas moram e extrapolar um raio de dez quilômetros como a sua zona de uso econômico deles”, prossegue Veríssimo. Esse método meio preguiçoso de avaliar populações tradicionais já causou muita confusão em áreas protegidas na Amazônia. As expedições sócio-econômicas no mosaico da Calha Norte tem o objetivo de não repetir essas experiências anteriores “Voce tem que ir fundo, ver quais são os recursos naturais explorados, onde eles estão e quais são as rotas de locomoção da população”, diz ele. Os estudos estão descobrindo que apesar da questão social na região não ser problemática, nem por isso ela é menos complexa.
Zona cinzenta
Santos foi encarregado de de descobrir como os quilombolas de Porto Cachoeira exploram os castanhais da região. Cada família tem um coletador de castanha e eles viajam longe atrás delas. Em toda a área do mosaico, os pesquisadores contabilizaram cerca de 601 famílias de quilombolas. A maior parte destá dentro dentro de duas áreas que juntas têm cerca de 600 mil hectares titulados e que ficam à Sudeste e Sudoeste da Floresta Estadual do Trombetas. Não é o caso da Comunidade de Cachoeira Porteira, cujos membros habitam zona na Reserva Biológica do Trombetas, federal, e uma pontinha da Floresta Estadual.
Fora essa diferença, os quilombos da região levam a vida de maneira semelhante. Exploram castanhais e lavouras de subsitência. Com as castanhas, eles ganham trinta reais por caixa. Duas caixas e meia correspondem a 100 litros e por ano, segundo o dono da fábrica que processa essa colheita em Oriximiná, município da região, eles juntam em média o equivalente a um milhão de litros. O trabalho vai apenas de fevereiro a junho. “O resto do ano eles ficam relativamente ociosos, cuidando de lavouras de subsistência que tem de 1 a 2 hectares por família e onde plantam banana, milho e mandioca”, conta Santos. Palmieri diz que a coleta de castanhas tem caráter coletivo.
Ela não parece ter base competitiva e a única regra que eles seguem na individualização da produção diz respeito à castanhas empilhadas no chão. “Cada monte tem um dono”, explica. As lavouras servem predominantemente para subsistência. Mas seu tamanho varia e a venda de excedentes pode descaracterizar o extrativismo. O problema maior é o gado, coisa que não se enquadra muito bem numa cultura extrativa e, claro, traz evidentes prejuízos para uma unidade de conservação. “A questão é que o gado lá virou para eles uma poupança, uma espécie de seguro”, diz Palmieri. Em caso de sufoco, uma rês tem liquidez imediata.
Em média, cada família tem de 3 a 4 cabeças. Mas há quem tenha mais. Em Cachoeira Porteira, o líder quilombola tem 14 cabeças de gado. “Mas não dá assim de ante-mão para definir que sua criação está completamente fora dos padrões aceitáveis”, diz Palmieri. “Afinal, ele tem muitos filhos e, todos os anos, doa pelo menos uma cabeça de gado à comunidade”. Antes de chegar a uma conclusão sobre o que é ou não extrativismo e quem o pratica, os pesquisadores irão montar fichas sobre cada uma das famílias quilombolas para, com base nelas, fazer recomendações sobre como definir extrativismo e subsistência naquela área, um ponto importante para a gestão dos aspectos sociais dentro das unidades que formam o mosaico paraense.
“É um trabalho que acontece numa zona meio cinzenta”, reconhece Palmieri. Sônia Kinker, diretora de Áreas Protegidas da SEMA do Pará conta que há uma certa pressa em montar os conselhos consultivos das unidades, para dividir a responsabilidade dessa definição com as próprias comunidades. O trabalho de formação dos conselhos envolverá cursos de capacitação para seus membros. “Vamos ensinar quais são os direitos e deveres dos conselhos e das populações locais, o que são unidades de conservaçnao e o que se pode ou não fazer dentro delas, quais os temas que os conselheiros devem debater e, finalmente, qual o papel da SEMA nisso tudo”, diz. Se tudo correr como planejado, os conselhos estarão montados em março.
Miscigenação
“A escala de problemas sociais nessas unidades, ainda bem, é pequena”, diz Valmir Ortega, secretário de meio ambiente do Pará. “Por isso mesmo é bom investigar o potencial para eventuais confusões”. E não apenas entre os quilombolas. O mosaico está entremeado por quatro Terras Indígenas (TI) e seus habitantes frequentam o terreno das unidades estaduais e federais na área. Os Zo’És, que habitam uma TI de 670 mil hectares encravada entre as Florestas Estaduais do Trombetas e Paru e a Estação Ecológica do Grão-Pará ainda estão relativamente isolados. As outras etnias da região, Hixkatyana, Katxuyana e WaiWai, nem tanto. No caso dos WaiWai, uma explosão populacional nos últimos anos – sua aldeia principal está com cerca de 2 mil índios – e a caça desenfreada desencadearam um impacto negativo, localizado, nos recursos naturais.
“Eles caçam e pescam todos os dias e a escassez de alimentos começou a afetá-los”, conta Palmieri. Por conta dessa situação, duas aldeias pequenas, ao invés de se deslocarem para outras áreas de sua Terra Indígena, foram se instalar no entorno de Cachoeira Porteira. “E os índios e quiolombolas iniciaram um processo de miscigenação”, relata Palmieri, sem arrsicar a dizer no que isso pode dar. Em que pese o estarem se casando, índios e quilombolas vivem uma pendenga em torno dos castanhais. Para alcançá-los, os membros dos quilombos têm que atravessar território indígena e os WaiWai e Hixkatyana cobram um pedágio – uma parcela da colheita de castanhas.
“Não chega a ser um conflito. Mas pode acabar em confronto e portanto é bom prestar atenção para entender a situação e propor soluções”, diz Palmieri. Essas duas etnias também perambulam por boa parte do mosaico e vão até a Guiana, onde trocam cachorros por armas com índios Tyreos. “Não se sabe bem porque, mas os índios daqui tem facilidade de arranjar cães. E os de lá, armas”, conta ele. O drama é que esses dois instrumentos estão sendo empregados na caça, também praticada pelos quilombolas, o que contribui para aumentar a pressão em cima dos recursos naturais.
Além dos índios, quilombolas e dos garimpeiros no Jari, que por sinal pediram oficialmente seu reconhecimento como comunidade tradicional, os responsáveis pelo levantamento sócio-econômico da região identificaram um grupo de colonos vindos de outros estados que se estabeleceu na borda Sul da Floresta Estadual do Parú. São todos agricultores familiares e a pressão que exercem sobre o mosaico é mínima. Mas se não houver cuidado para mantê-la nesse nível, há sempre o risco da coisa desandar. A Calha Norte é uma região de difícil acesso, sua densidade populacional ainda é baixa, mas como ela já dá sinais de esgotamento localizado de alguns recursos naturais, sobretudo caça, e a história tem muitos exemplos da capacidade humana para devastar, não custa olhar como as populações que usam a área se comportam para evitar o pior.
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(Por Manoel Francisco Brito, OEco, 02/10/2008)