Enterrado sob cerca de 40 mil pessoas, o lixo produzido há duas décadas na capital federal vem brotando em alguns pontos, como na nascente do Córrego Cabeceira do Valo, nas imediações da porção sul do Parque Nacional de Brasília. O monitoramento da contaminação é feito pelo professor Sérgio Koide, do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB). Segundo ele, parte da Cidade Estrutural, invasão iniciada por catadores de lixo que atuavam ao redor do Aterro do Jóquei, cresceu sobre as parcelas mais antigas do depósito. Mesmo invisíveis, os poluentes mais antigos dão sinais de que estão bem ativos.
Construído junto àquela área protegida de Cerrado, sem nenhum tipo de impermeabilização ou estudo ambiental, o Aterro do Jóquei segue recebendo resíduos de Brasília. No entanto, conforme Koide, por hora o perigo de uma contaminação mais grave é pequeno. A empresa responsável pela área drena líquidos nocivos, produzidos pelo material em decomposição. Para ele, a maior problema virá com a desativação do aterro. “Na hora que eles (a empresa) saírem de lá, quem vai cuidar disso?”, questiona o professor.
Ao que tudo indica, o lixão será substituído por um aterro sanitário em Samambaia, cidade satélite de Brasília. Mas isso demorará um ano, no mínimo, de acordo com a diretora do Serviço de Limpeza Urbana do Distrito Federal (SLU), Fátima Có. Ela garantiu que haverá um plano de recuperação da área degradada próxima ao parque nacional.
Os números e a falta que eles fazem
A situação precária do tratamento do lixo na capital do país reflete como a problemática dos resíduos sólidos vem sendo negligenciada em todo o Brasil. As evidências do descaso começam com o ponto mais básico para a implantação de qualquer tipo de política pública: a informação. Quase não existem dados a respeito de lixo municipal. O levantamento mais completo foi feito pelo Ministério das Cidades, com dados dos próprios municípios. A pesquisa abrange principalmente grandes cidades, onde vive 49% da população. No entanto, apenas 247 dos 5.664 municípios brasileiros estão representados no estudo, deixando de fora as menores cidades, onde a situação do tratamento dos resíduos tende a ser pior, como reconheceu o coordenador do Programa de Modernização do Setor de Saneamento do Ministério das Cidades, Ernani Ciríaco.
Mesmo com dados de cidades supostamente mais aparelhadas, o diagnóstico apontou que apenas 39,4% dos municípios descartam seu lixo em aterros sanitários com todas as condições para receber resíduos. Em 28,19% dos casos, os dejetos vão para lixões sem nenhuma estrutura e, em 32%, o descarte é feito em aterros controlados, ou seja, depósitos onde se tenta minimizar os impactos ambientais.
A criação de um inventário nacional de resíduos sólidos é uma das propostas do Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), o marco regulatório que está sendo discutido no Congresso, desde 1991. De acordo com o coordenador do Grupo de Trabalho que elabora a proposta na Câmara, deputado Arnaldo Jardim (PPS-SP), o plano irá propor a adoção de um Sistema Declaratório Anual de Resíduos Sólidos. “Um instrumento pelo qual será possível fazer o mapeamento, o planejamento e o controle do lixo gerado”, explicou Jardim. Em São Paulo, um sistema aprovado no fim do ano passado obriga empresas a declarar anualmente ao órgão ambiental os resíduos gerados, sua constituição, quem os transporta e o local de descarte.
O deputado acredita que o projeto do PNRS seja aprovado em breve devido ao “ambiente extremamente favorável” criado pela “boa vontade do governo”, que enviou, fim do ano passado, um projeto de lei para a Câmara, e também pelo interesse do presidente da casa, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), em discutir o tema.
Regulamentações e organização
Além da falta de informações sobre o lixo, o PNRS trata de outros pontos, como a Logística Reversa. Esse processo é “caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios, destinados a facilitar a coleta e a restituição dos resíduos aos seus geradores, para que estes sejam tratados ou reaproveitados em novos produtos”, segundo Arnaldo Jardim. Nesse modelo, os fabricantes não só distribuem o produto, mas também o recolhem quando não há mais uso para ele. As empresas devem então reaproveitar ou reciclar os componentes, se possível, e depois descartar de maneira ambientalmente segura aquilo que não tem mais uso.
Na 91ª Reunião do Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente), foi aprovada uma resolução que estabeleceu prazo de até dois anos para que os pontos de venda de pilhas e baterias recebam de volta os produtos já utilizados. Caberá então aos fabricantes, vendedores e importadores dar destinação ambientalmente adequada aos materiais recolhidos. Mas, de acordo com a assessora técnica do Ministério do Meio Ambiente, Ruth Tabaczenski, a responsabilização pelos resíduos de outros produtos, incluindo os potencialmente nocivos, como medicamentos e aparelhos eletrônicos, deverão ser regulados pela Política Nacional de Resíduos Sólidos. “Estamos esperando a Política Nacional para se normatizar de forma mais global”, ressaltou.
Na mesma reunião do Conama, esteve em pauta uma proposta para simplificar o licenciamento ambiental de aterros de pequeno porte. “Pequenos municípios às vezes não têm condições de fazer um EIA/RIMA [estudo de impacto ambiental]”, explicou Tabaczenski. Mas houve um pedido de vistas e o texto não foi apreciado.
Todavia, criar aterros nem sempre é a solução, com ressaltou Ernani Ciríaco. “Em vários casos que acompanhamos, aterros recém-instalados se transformaram em lixões”. Ele considera que o mais importante é organizar os serviços municipais de saneamento. Entre eles, está a reciclagem. Ciríaco destacou que, apesar de 56% das localidades pesquisadas pelo Ministério das Cidades realizarem algum tipo de coleta seletiva, a quantidade de material efetivamente reaproveitado é muito baixa. Isso porque a maior parte da coleta é realmente feita pelos catadores, presentes em 205 (83%) dos municípios pesquisados.
Ciríaco afirmou que é preciso apoiar a profissionalização das pessoas que sobrevivem da coleta e reciclagem. Para ele, “o próprio nome catador é pejorativo”. Ele disse, ainda, que o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) prevê R$ 50 milhões para organizar trabalhadores e construir instalações adequadas ao trabalho de separação dos materiais.
No novo aterro de Brasília, em Samambai, “não será permitido a presença de ninguém”, salientou Fátima Co, do SLU. Segundo ela, o Governo do Distrito Federal construirá centros de triagem para trabalhadores ligados à cooperativas. Será feito também um cadastramento e, aqueles que desejarem abandonar a atividade, poderão fazer cursos de capacitação, por meio de um convênio que será firmado entre SLU, Sebrae e UnB. Os cursos ainda não foram definidos.
Um catador
José Roberto dos Santos (foto ao lado) já foi frentista, mas há dez anos veio de São Paulo para procurar trabalho em Brasília. Desde aquela época, vive da coleta de materiais recicláveis. Ele não acredita que a proposta do governo de organizar os catadores em cooperativas trará melhorias ao seu dia-a-dia. “Isso vai beneficiar quem está lá sentado”, reclama. Segundo o seu ponto de vista, o projeto poderá diminuir os seus rendimentos.
Ele se dedica a recolher principalmente plástico e papelão. Conforme o catador, as latinhas de alumínio, material reciclável de maior valor, “não existem”, devido a grande procura pelo produto. Confessou, ainda, que não toma cuidados para evitar doenças no contato com os resíduos. “Talvez eu até esteja infectado com algum tipo de doença, o lixo é terrível”, evidenciou.
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(Por Daniel Mello*, OEco, 25/09/2008)