Hoje se enfrentam dois olhares contraditórios com referencia à Terra. Um, a vê como um grande objeto, destituído de espírito, à disposição do ser humano que pode dispor de seus recursos como bem entender. Este olhar permitiu o projeto técnico-científico de conquista e dominação da Terra, que está na base do atual aquecimento global. O outro, a considera como um superorganismo vivo, a Gaia dos modernos ou a Pachamama dos povos originários andinos. Ela se auto-regula e articula todos os seus componentes de forma que se faz a permanente produtora e reprodutora de todo tipo de vida.
Este segundo olhar, foi o dominante na História da Humanidade e foi responsável pelo equilíbrio que se estabeleceu entre a satisfação das necessidades humanas e a manutenção do capital natural em sua integridade e vitalidade. Hoje cresce a consciência de que o primeiro olhar – da dominação e devastação – precisa ser limitado e superado, pois, do contrario, pode provocar imenso desastre no sistema da vida. A Terra seguramente continuará, mas talvez sem a nossa presença. Dai a urgência de revisitar os portadores de o primeiro olhar – da Terra como Grande Mãe e Casa Comum- pois eles são portadores de uma sabedoria que nos falta e de formas de relação para com a natureza que nos poderá salvar. Então nos encontramos com os povos originários, os indígenas que, segundo dados da Organização das Nações Unidas, são mais de cem milhões no mundo inteiro, distribuídos em quase todos os países, como no extremo Norte do Continente Americano com os sami (esquimós) ou no extremo Sul, com os mapuche.
Neste mês de Setembro, pude me entreter longamente com os mapuche que vivem na Patagônia argentina e chilena. São muitos, somente no Sul do Chile mais de quinhentos mil. Vivem nestas regiões andinas há cerca de 15 mil anos. Resistiram a todas as conquistas.
Quase foram exterminados, no lado argentino, pelo feroz General Roca e, no lado chileno, são muito discriminados. Aos que hoje ocupam terras que eram suas, se aplicam as mesmas Leis usadas contra os terroristas da Constituição de Pinochet. Falando com seus lideres (lonko) e sábios (machis), logo salta à vista a extraordinária cosmologia que elaboraram. Tudo é pensado em quatro termos. Segundo Carl Gustav Jung, o número quatro constitui um dos arquétipos centrais da totalidade. Sentem-se tão vinculados à Terra que se chamam “mapu-che”: seres (che) que são um com a Terra (mapu).
Por isso se sentem água, pedra, flor, montanhas, insetos, sol, lua, todos irmanados entre si. Aprenderam a descodificar e compreender o idioma da Mãe Terra (Ñeku Mapu): o soprar do vento, o piar do pássaro, o farfalhar das folhas, o movimento das águas e principalmente os estados do Sol e da Lua. Em tudo sabem tirar lições. Seu ideal maior é viver e alimentar uma profunda harmonia com todos os elementos, com as energias positivas e negativas e com o céu e com a terra. Sentem-se os cuidadores da natureza. A comunidade sobe ao morro mais alto. Toda a terra que avista até se encontrar com o céu é-lhe designada para cuidar. Perturbam-se quando outros não mapuche penetram estas terras para introduzir cultivos, pois entendem que assim se torna mais difícil cumprir a sua missão de cuidá-la.
Desenvolveram sofisticados métodos de cura. Toda doença representa uma quebra do equilíbrio com as energias da Terra e do Universo. A cura implica reconstituir este equilíbrio, de sorte que o enfermo se sinta novamente inserido no Todo. Os mapuche são orgulhosos de seu conhecimento. Não aceitam que seja considerado folclore ou uma visão ancestral. Insistem em dizer que é um saber tão sério e tão importante como o nosso saber científico, apenas é diferente. Na busca de regeneração da Terra eles podem nos inspirar.
(Por Leonardo Boff*, Eco21, 22/09/2008)
*Teólogo, escritor e ambientalista