Defensor da biocivilização, o economista Ignacy Sachs é formado em Economia, pela Faculdade de Ciências Econômicas e Políticas do Rio de Janeiro, atual Universidade Cândido Mendes. Fundou o Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, do qual é co-diretor. Criador do conceito de ecodesenvolvimento, Sachs trabalhou na Primeira Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU, em 1972, e mais tarde, em 1992, como conselheiro especial da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Entre suas obras se destacam “Rumo à ecossocioeconomia - Teoria e prática do desenvolvimento”.
A que o senhor atribui a crise alimentícia mundial? Por que em pleno Século 21 a Humanidade ainda enfrenta o problema da fome?
Ignacy Sachs - A crise alimentar não se deve ao déficit da produção de alimentos, e, sim, essencialmente, ao fato de que uma grande parcela da humanidade não tem poder aquisitivo para comprar comida. Ou seja, a questão alimentar está indissoluvelmente ligada à questão social. Portanto, se queremos resolver a crise alimentar, precisamos colocar no centro do debate a questão social e discutir com que modelo vamos produzir mais biocombustíveis e mais alimentos. Para isso, precisamos revisar drasticamente o posicionamento defendido no Século 20, de que o futuro está na industrialização e urbanização.
O senhor sugere a criação de uma biocivilização moderna. Em que consiste essa proposta? Como ela pode combater os problemas ambientais, sociais e econômicos?
Sachs - Do ponto de vista ambiental, a biocivilização é muito mais benigna do que a utilização das energias fósseis. Portanto, não há dúvida de que ela permite afastar a ameaça de mudanças climáticas irreversíveis. Entretanto, a questão é: como, dentro dessa visão de estratégia para o futuro, poderemos assegurar certos equilíbrios?
O debate atual versa sobre a necessidade de privilegiar a produção de biocombustíveis. Então, questiono se a busca de uma nova segurança energética poderá prejudicar um objetivo socialmente mais importante, que é a segurança alimentar.
Como sabemos, não existem condições de levar toda a população do mundo para a cidade. Por isso, não é possível discutir esse problema da insegurança alimentar e da segurança energética a partir da biomassa sem recolocar no centro do debate a questão de um novo ciclo de desenvolvimento rural. Este pode ser um desenvolvimento rural socialmente negativo, se permitirmos que as lavouras progridam unicamente pelo caminho de uma agricultura sem homens e altamente mecanizada. Ou, podemos, ao contrário, afirmar que a biocivilização oferece uma oportunidade extremamente interessante para tomarmos o rumo de um desenvolvimento rural virtuoso, baseado na agricultura familiar, que gera muito mais oportunidades de emprego e renda para as populações rurais.
Muitos ambientalistas defendem a retórica de que as piores energias não comprometem o objetivo da segurança alimentar. Entretanto, nesse caso, é necessário levar outros aspectos em consideração. É preciso prever o aumento da população mundial que, em meados deste Século, chegará a 9 bilhões de pessoas. Além disso, se deve levar em conta o fato de que uma parcela importante da Humanidade vai dormir com fome. Portanto, os regimes alimentares devem melhorar. Se deixarmos as coisas acontecerem pela força do mercado, corremos um sério perigo de ver os interesses dos donos de automóveis predominarem sobre o problema dos estômagos vazios, e de partirmos, conseqüentemente, para uma crise alimentar drástica.
Os biocombustíveis podem salvar os países da insegurança alimentar e energética?
Sachs - A produção de biocombustíveis deve andar de mãos dadas com a produção de alimentos. Não temos de pensar mais em cadeias de produção justapostas, e sim em sistemas integrados de produção de alimento e energia adaptados aos diferentes biomas. Um exemplo: quando se produz óleo vegetal para biodiesel, conseqüentemente é produzido um volume considerável de tortas (derivadas da extração de óleo). Se essas tortas forem bem aproveitadas para a ração animal, pode-se transformar uma pecuária extensiva que ocupa muitos pastos numa pecuária semi-intensiva. Então, essa área livre pode servir à produção de alimentos. Além disso, é importante incentivar o cultivo de plantas que podem servir para a extração de biocombustíveis e crescem em áreas degradadas, impróprias para o cultivo de alimentos.
Estamos às vésperas de uma grande revolução tecnológica, ou seja, nos encaminhamos para a segunda geração dos biocombustíveis com o etanol dito celulósico. Esse novo biocombustível irá aproveitar todos os resíduos vegetais e florestais e irá produzir álcool através da celulose e de espécies arbóreas de crescimento rápido.
Se avaliarmos tudo isso, chegamos à conclusão de que há condições para avançar simultaneamente no sentido de atender aos requisitos da segurança alimentar e energética, privilegiando uma nova geração de biocombustíveis. Essa visão é particularmente interessante para os países tropicais, que têm uma vantagem natural para produzir mais rapidamente um número elevado de biomassa do que os países de clima temperado. Nesse ponto, se abre a chance histórica para o Brasil. Os brasileiros têm condições de liderar o processo de construção da biocivilização moderna, respeitando esses condicionantes sociais que eu enumerei, e valendo-se do fato de que o sol aqui é, e sempre será nosso. Porém, não se deve ficar só nessa prerrogativa natural. Deve-se potencializar esse benefício através da pesquisa e da busca de formas apropriadas de organização social do processo produtivo. Este é o desafio e a tarefa para os jovens do Brasil.
O Brasil deve investir na exportação de biocombustíveis? Alguns ambientalistas criticam as exportações justamente porque os produtores, ao invés de plantar em áreas degradadas, tentarão investir em terras nobres, visando um lucro muito maior e agravando as crises ambiental, econômica e social. Como o senhor percebe esse embate?
Sachs - Não é possível discutir os problemas nesse nível de generalização. Precisamos cuidar para tratar do meio ambiente como algo não separado do problema social. O desenvolvimento sustentável deve ser ao mesmo tempo, um desenvolvimento includente. O ponto de partida desse debate deve ser formado pelo seguinte tripé: os objetivos de desenvolvimento são sempre sociais e éticos ou, pelo menos, deveriam ser; existem condicionantes ecológicas, que devem ser explicitadas e respeitadas, sendo que, para que as coisas aconteçam, é preciso dar lhes uma viabilidade econômica, porque não adianta lançar idéias bonitas no ar, se elas não se materializam; e, finalmente, a criação de um Estado pró-ativo que regule o mercado.
Sabemos que o mercado é míope e que, nesse processo de exportação de biocombustíveis, não considerará as questões ambientais e sociais em longo prazo; ele funciona de maneira a externalizar, sempre que possível, os custos para aumentar os lucros. Portanto, se ele não for obrigado, através de uma regulação do seu funcionamento, a levar em conta as dimensões sociais e ambientais, continuará no caminho de externalização dos custos sociais e ambientais do processo de produção.
Estamos realmente saindo de um modelo energético insustentável para ingressar num modelo sustentável?
Sachs - Já passamos por duas grandes transições na história. A primeira ocorreu quando a nossa espécie passou da caça para a agricultura e pecuária. Depois, aconteceu a segunda grande mudança, no fim do Século 17: a transição para as energias fósseis, abundantes e baratas. Essa transição está na base das revoluções industriais que aumentaram de uma maneira extraordinária. Se, por um lado, a variedade de coisas que estamos produzindo deu lugar a um progresso técnico enorme, por outro, ela vem causando uma emissão cada vez maior de Gases de Efeito Estufa (GEE), colocando na agenda o problema da mudança climática. É verdade que estamos no começo de uma saída que levará décadas para acontecer. Nesse novo cenário, vamos outra vez depender, e cada vez mais, da energia solar captada pelo processo de fotossíntese, que era a principal energia da Humanidade, antes da Revolução da Energia Fóssil. Contudo, não estou dizendo que iremos regredir. Ao contrário, hoje já sabemos usar melhor a biomassa. Ela é utilizada como ração animal, adubo verde, material de construção, bioenergia, ou seja, é matéria-prima de toda uma química verde. Por isso, devemos falar em biorefinaria como uma analogia à refinaria do petróleo. E é isso que chamo de biocivilização moderna.
Quando falamos em substituição de energia fóssil, estamos tratando daquela que provoca emissão de GEE, ou seja, petróleo, gás e, sobretudo, as formas atuais da queima de carvão.
Nesse contexto, também enfrentamos o problema dos biocombustíveis líquidos, como etanol, biodiesel e biogás, que pode ser produzido em biodigestores, a partir do esterco animal ou dos resíduos orgânicos da cidade, e o problema do carvão vegetal, que requer uma discussão aprimorada, pois a maneira como ele vem sendo produzido, através do corte da lenha, é extremamente predatória, na medida em que consiste na destruição das matas nativas. Outro agravante é a maneira como esse produto é queimado, dentro de um ambiente fechado como a casa: ele produz fumaça e gases poluidores, tendo efeitos muito negativos sobre a saúde. Devemos, então, o mais urgentemente possível, eliminar essa forma de produção de carvão. Mas, ao mesmo tempo, se abre a possibilidade de produzir um carvão vegetal a partir de biomassas plantadas e replantadas. Portanto, não há necessidade de mexer com a mata nativa. Com essas alternativas propostas a partir da biomassa, a Humanidade se encaminha para mais um período de transição. Surge, assim, uma nova geração de tecnologias de produção que classifico como carvão vegetal verde.
Em que medida o modo de consumo contribui para o agravamento das crises alimentícia e energética? Por exemplo, fomenta a necessidade de cada um ter seu próprio automóvel...
Sachs - Eu não tenho uma solução. Apenas digo que o consumo excessivo de energia, que caracteriza as civilizações modernas, está ligado ao fato de que a mobilidade é considerada um bem. Com o pretexto da globalização, produtos circulam através do mundo, enquanto poderiam ser produzidos próximos ao lugar do consumo. Além disso, temos um sistema de transporte centrado no automóvel, de uma ineficiência energética enorme, se comparado a outros sistemas de transporte coletivo. Esse é o tema mais importante e difícil do debate. Contudo, insisto, não será da noite para o dia que encontraremos soluções para mudar o paradigma da mudança energética!
Se observarmos qual a parte da energia que finalmente chega à roda do automóvel, percebemos que há um gasto enorme no processo da produção/distribuição. No que se refere ao automóvel, um pesquisador chamado Amory Lovins insiste que, ao invés de produzirmos carros de aço, devemos fazer veículos ultraleves, com materiais modernos como fibras de vidro. Com essa matéria-prima, o peso do automóvel seria reduzido à metade. O consumo, nesse sentido, também diminuiria, porque grande parte da energia que o automóvel consome é para carregar a si mesmo. Para deslocar um passageiro que pesa 70 kg, por exemplo, é necessário deslocar mais uma tonelada de aço. Portanto, há uma série de mudanças que podem ser pensadas.
(Por Patricia Fachin*, Eco21, 21/09/2008)
*Jornalista do Instituto Humanitas Unisinos (IHU) da Universidade Unisinos