Lixo, ligações de esgoto irregulares e ocupações nas margens dos rios facilitam a disseminação de doenças de terceiro mundo na capital paranaense No Jardim Santos Andrade, área de ocupação irregular do bairro Santa Quitéria, a maior parte das crianças que brincam às margens do Rio Barigüi sabe que não pode chegar perto da água. Elas vêem o lixo acumulado, os grandes ratos que circulam por ali e ouvem dos pais que há risco de transmissão de doenças. A situação do local é precária – o poder público pouco dá as caras –, mas o que deixa os moradores mais indignados é ter de conviver com uma sujeira que não foram eles que produziram. O lixo vem de longe e de várias regiões de Curitiba, tanto pobres como ricas.
Doenças como leptospirose e hepatite do tipo A, que ocorrem por causa da sujeira e do descaso ambiental, também não conhecem fronteira social. Nos dois últimos anos, essas enfermidades foram registradas tanto na periferia como em regiões centrais de Curitiba. Na média de 2006 e 2007, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, foram 6,9 casos de leptospirose e 7,5 de hepatite A para cada grupo de 100 mil habitantes. O índice é mais alto do que na capital de São Paulo, onde a primeira doença vitimou 2,47 pessoas a cada 100 mil, de acordo com dados da Divisão de Zooneses paulista. Nas regiões urbanas, o rato é o principal vetor da doença, que também pode ser provocada por águas de enchentes. No caso da hepatite, a contaminação é pela ingestão de água e alimentos contaminados ou diretamente de uma pessoa para outra.
“Mas o contágio não é só na favela ou em área de banhado. O dono de um carro importado, ao passar a mão pelo veículo, pode se contaminar com o xixi de um rato que passou pelo local”, alerta o professor Carlos Mello Garcias, do curso de Engenharia Ambiental da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Segundo ele, para diminuir os problemas ambientais e sanitários, o prefeito eleito terá de direcionar, de forma adequada, recursos para proteção e promoção social, coleta de lixo e ampliação da rede de esgoto.
Em Curitiba, a rede de esgoto da Sanepar chega a 88,62% das residências. Das 333,7 mil ligações, 11% estão irregulares. Isso é, todos os dejetos de pelo menos 37 mil casas são jogados diretamente nos rios da cidade.
A imagem que o especialista em saneamento básico Leo Heller guarda de Curitiba é a de uma das cidades mais desenvolvidas do país. Por isso ele não avalia a estrutura da capital paranaense como problemática. Mas Heller, que é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), reconhece que doenças fortemente relacionadas à falta de higiene e saneamento são mais comuns do que se imagina. De acordo com ele, essas enfermidades representam 10% das mortes, em todo o mundo, que poderiam ser evitadas.
CarrinheirosAs crianças do Jardim Santos Andrade não sofreram contaminação por falta de higiene nos últimos anos, mas recentemente um morador da região morreu de leptospirose. Ele era um dos atravessadores do material recolhido por carrinheiros da vila. Por sinal, essa categoria de trabalhadores, que reúne hoje uma mão-de-obra estimada em 5 mil pessoas na capital paranaense, é uma das principais vítimas da falta de saneamento. O presidente da Cooperativa de Homens e Mulheres da Cidade de Curitiba e do Litoral, Valdomiro Ferreira da Luz, 47 anos, teve leptospirose recentemente, depois de ver uma colega catadora da Vila das Torres morrer pela doença. “Vários catadores já tiveram. Tem quem gosta de estocar o lixo uma semana e não sabe o risco que está correndo.”
A organização de catadores passou a ser estimulada pelo poder público. A prefeitura criou neste ano dois parques de recepção de materiais recicláveis, no Cajuru e no Boqueirão, onde só os catadores organizados podem atuar. Nesses parques, o catador leva o lixo que recolhe e pesa o material, que será vendido pela associação. Dessa forma, o lixo não é levado para casa. O parque conta com equipamentos como mesa para separação, prensa, balança. Isso agrega mais valor na hora da venda.
Há a previsão de implantação de 25 parques desse tipo até 2010. Mas a procuradora Margaret Matos de Carvalho, do Ministério Público do Trabalho, estima que pelo menos 50 parques deveriam estar em funcionamento desde já, para atender minimamente à população de carrinheiros. A procuradora, junto com outras organizações, cobra dos candidatos a prefeito a assinatura de um documento em que se comprometam a criar um fundo de assistência dos catadores para remunerar de alguma forma o serviço que eles prestam à cidade.
ReclamaçãoCélio Ramos, que mora no Jardim Santos Andrade, reclama do dinheiro que consegue tirar da atividade. “Uns anos atrás a gente conseguia R$ 25, até R$ 30 por dia. Agora não passa de R$ 5, R$ 10.” Para ele, que acumula sacos e sacos de lixo no quintal de casa, à espera do dia da negociação com os atravessadores, a prefeitura deveria fiscalizar mais as balanças utilizadas pelos compradores. Jozélia da Conceição Inácio também conta que a situação no passado era muito melhor. “Criei seis filhos catando papel. Hoje não daria para fazer isso não.”
A coordenadora de resíduos sólidos da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Marilza Oliveira Dias, conta que está sendo discutida a remuneração do carrinheiro. E a possibilidade de a categoria, por meio das organizações e cooperativas, assumir de vez a coleta seletiva da cidade no futuro.
Hoje, os catadores já são responsáveis por mais de 90% do lixo reciclável coletado em Curitiba. Juntando com o material recolhido pelos caminhões municipais, são 550 toneladas diárias de materiais recicláveis. Esse número poderia ser bem maior. De um total de 2,4 mil toneladas que são enviadas todos os dias ao Aterro da Caximba, que atende a Curitiba e 15 municípios da região metropolitana, 30% poderiam ser recicladas.
Se esse material todo que chega ao aterro tivesse sido reciclado, talvez a Caximba não estivesse em situação tão crítica. Depois de algumas prorrogações de sua vida útil, o aterro deve ser definitivamente desativado em julho do ano que vem. Os municípios que hoje ali depositam o lixo formaram um consórcio e estão correndo contra o tempo para a escolha de uma nova área para o aterro da Grande Curitiba – e também para realizar a licitação da empresa que fará a gestão do depósito. “Buscamos uma solução não como a Caximba, que era um lixão, mas sim um sistema de processamento de resíduos, que permita que os dejetos sejam transformados e retornem como insumo para o sistema produtivo”, explica José Tadeu Motta, representante de São José dos Pinhais no consórcio. Ou seja, a idéia é que os gases emitidos pelo aterro e o lixo em decomposição sejam usados para gerar energia. O Instituto Ambiental do Paraná (IAP) vai decidir, entre três áreas pré-selecionadas, qual tem as melhores condições para receber o novo aterro.
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Gazeta do Povo, 22/09/2008)