No dia 11 de setembro, foi celebrado o dia do Cerrado, porém é difícil encontrar razões para comemoração. Este é o segundo maior bioma do Brasil e, devido à grande quantidade de espécies que abriga e ao alto risco de desaparecer pela ação do homem, é considerado um dos hotspots brasileiros, juntamente com a Mata Atlântica. Segundo pesquisa de 2004 da organização Conservação Internacional, 57% da área original do bioma já foi destruída e metade do que resta já está bastante comprometido.
Uma das conservacionistas mais atuantes e reconhecidas no Brasil, Maria Tereza Jorge Pádua, afirma que são urgentes ações para proteger o pouco que resta do bioma, pois “tudo tem sido destruído para dar lugar à produção de grãos”.
Engenheira agrônoma e mestre em Ecologia e Manejo de Vida Silvestre, Pádua já foi diretora de Parques Nacionais do Brasil, secretária geral e presidente substituta do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) entre 1968 e 1981. Em 1992, foi presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Antes, em 1986, junto com outros interessados na conservação da natureza brasileira, fundou a Fundação Pró-natureza (Funatura) que tem no Cerrado sua principal área de atuação. Atualmente, também é membro do Conselho Curador da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza.
Confira abaixo a entrevista que ela concedeu ao Conservação On-line sobre as ameaças e oportunidades de conservação do Cerrado.
Conservação On-line: A agricultura e a pecuária são historicamente as ameaças mais conhecidas ao Cerrado, mas um novo ator também começa a preocupar quem se interessa pelo bioma: os biocombustíveis. Qual o peso desses fatores sobre o Cerrado atualmente?
Maria Tereza: A cana-de-açúcar já ocupa 70% das lavouras do interior do estado de São Paulo, que possui excelentes solos. É um descalabro, com a fome existente no mundo, produzir-se combustível em solos que poderiam produzir comida. Com a expansão do uso do etanol como combustível é evidente que o Cerrado será mais utilizado do que é hoje para o plantio da cana-de-açúcar, além de grãos. Até o Pantanal está sendo vítima da cana-de-açúcar, principalmente no planalto. A área ecotonal entre o Cerrado e a Amazônia também vem sendo objeto de cobiça pelos produtores de etanol e do biodiesel. Penso que o uso, cada vez mais intenso do Cerrado, é inevitável, infelizmente, pois sua topografia é muito boa para a agricultura, como já está ocorrendo em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins.
Conservação On-line: A posição de que o crescimento não consegue estar atrelado à conservação da natureza é outro complicador para proteção do Cerrado. É realmente impossível crescer sem desmatar?
Maria Tereza: É óbvio que não. A pecuária e a agricultura já usam 282 milhões de hectares da nossa extensão territorial. Se somarmos com os assentamentos rurais (70 milhões de hectares) e com a silvicultura (6 milhões de hectares) chega-se à cifra de aproximadamente 358 milhões de hectares de nossa extensão territorial que já estão ocupados pela pecuária e pela agricultura. Por que mais? Não podemos esquecer que países muito ricos, como, por exemplo, o Japão tem 70% de sua extensão territorial cobertos com florestas, se bem que a maioria não é nativa. Muitos outros países ricos possuem 40, 50 ou 60% de suas terras cobertos por alguma forma de vegetação. No Cerrado, só restam 30% de sua cobertura vegetal original, e essa destruição foi de décadas somente, não de centenas ou milhares de anos, como em outros países.
Conservação On-line: Fora as ameaças econômicas, o Cerrado também sofre por ser um bioma desvalorizado. O governo já deixou isso claro em vários momentos, um exemplo marcante foi a declaração do chefe de gabinete do presidente da república, Gilberto Carvalho, em referência a Lula: "entre um cerradinho e a soja, ele é soja". Como você vê isso?
Maria Tereza: Como uma demonstração de ignorância sobre a riqueza biótica e hídrica do Cerrado, um dos 25 hotspots do mundo, segundo publicação da CI [Conservação Internacional].
Conservação On-line: A própria população também dá pouco valor ao Cerrado. Por que é tão raro ver uma mobilização nos mesmos moldes quando se trata da Amazônia ou da Mata Atlântica? O que fazer para torná-lo um bioma reconhecido?
Maria Tereza: O bioma do Cerrado já é muito conhecido pelo agronegócio, sendo a maior região produtora de soja do mundo. Vários estados e cidades do bioma enriqueceram em poucas décadas. O que ficou escondido da população e foi empurrado para debaixo do tapete foi sua enorme e célere destruição. Mas, os jovens de hoje não sabem como era o bioma há 40 ou 50 anos. Não viram, como nós, os mais velhos, tivemos a oportunidade de ver. Assim é difícil que visualizem o que foi o Bioma. Hoje resta pouco para se fazer ou proteger.
Conservação On-line: A criação de unidades de conservação é a ferramenta mais efetiva para proteção do que ainda resta do Cerrado. Da região original ocupada pelo bioma, 70% já foram devastados. Atualmente, onde se encontram as melhores oportunidades para criação de unidades de conservação?
Maria Tereza: Oportunidades de grandes unidades de conservação são poucas, pois como eu já disse tudo tem sido destruído para dar lugar à produção de grãos. Porém, não tenho dúvidas em afirmar que se tem de correr para tentar proteger um pouco do que sobra das matas secas, em geral nas zonas cársticas.
Conservação On-line: Nas regiões mais fragmentadas e alteradas, ainda é possível fazer alguma coisa?
Maria Tereza: Claro. Tentar os corredores ecológicos com o uso das APPs [Área de Proteção Permanente] e das RPPNs [Reserva Particular do Patrimônio Natural] é uma estratégia bem eficaz, que vem sendo perseguida por várias ONGs e por muitos ambientalistas e até por algumas agências governamentais.
Conservação On-line: Devido às alterações que as mudanças climáticas podem causar aos ecossistemas, a fauna local precisaria se deslocar para outras áreas a fim de encontrar condições favoráveis para sua sobrevivência. Hoje, os animais encontrariam saídas para essas novas áreas?
Maria Tereza: Difícil dizer. Não há estudos conclusivos sobre o que se fazer com as conseqüências das mudanças climáticas na fauna silvestre. Uma boa política de prevenção é a mesma antiga fórmula: o estabelecimento de grandes unidades de conservação e com corredores entre elas, mas penso que já perdemos a oportunidade na esmagadora maioria do Cerrado.
Conservação On-line: As RPPNs são importantes instrumentos para conservação de áreas naturais. No entanto, são pouco atrativas para os proprietários de terras, visto que os benefícios são poucos e nem todas as áreas têm potencial para o ecoturismo. Mesmo a questão da perpetuidade gera controvérsia e diminui o interesse na criação das RPPNs. O que é necessário fazer para que os donos de terras procurem conservá-las?
Maria Tereza: A criação de RPPNs vem aumentando ano a ano. Algo que vem dando muito certo para a conservação da biodiversidade é esse aporte do setor privado. O Cerrado já possui um expressivo número de RPPNs, mas, que em geral são pequenas. Estimular o aumento das RPPNs deve ser meta governamental. O proprietário pode ganhar e muitos deles vêm ganhando com o ecoturismo, mas, pode, também, no futuro vender os créditos do resgate do carbono ou participar da servidão florestal prevista em Lei, além do desconto do Imposto Territorial Rural, que é inexpressivo.
Conservação On-line: Muitas pessoas que trabalham com meio ambiente afirmam que o Brasil possui uma legislação ambiental bastante avançada. O problema é que ela não é obedecida. O que falta para que essas leis saiam do papel e funcionem na prática?
Maria Tereza: As leis, sejam elas ambientais ou não, deixam muito a desejar quanto a seu cumprimento em nosso país. De uma parte não há disciplina social e nem tampouco educação para isso e de outra a impunidade é um fato sério no Brasil. Se as leis tivessem sido cumpridas nós teríamos muito mais de áreas protegidas no bioma do Cerrado, que como foi mencionado, não consegue ter o mesmo interesse e compreensão que os outros biomas.
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Conservação on-line / Fundação O Boticário, 16/09/2008)