O pequeno município mato-grossense de Poxoréu promove, entre 19 e 21 de setembro, seu 3º Festival de Praia. Praia de rio, claro. Há poucos dias, máquinas pesadas avançaram nos bancos de areia às margens do Rio Vermelho, abrindo espaço para carro de som, barracas e estacionamento. Panfletos e cartazes propagandeiam o patrocínio de empresas, Secretaria Estadual de Turismo, Prefeitura Municipal, Assembléia Legislativa e até do Banco do Brasil.
A festança para 14 mil pessoas com apoio governamental não é apenas ilegal por degradar áreas de preservação permanente, mas por ocorrer dentro da Terra Indígena Jarudore, sem qualquer autorização das autoridades competentes ou dos índios e com total omissão da Funai, que nada faz para impedir o abuso.
A Terra Indígena Jarudore é mínima, tem apenas 4.706 hectares, e é retalhada por 80 fazendas em seu interior. Um latifúndio, de mais de mil hectares, pertence a Edison Pierrô, compadre de um ex-administrador da Funai de Mato Grosso. A região é de Cerrado, em grande parte detonado pela pecuária, mas é ainda capaz de impressionar pelas dezenas de montanhas que se espalham pelo horizonte com formatos peculiares, como o Morro do Mandi.
Há registros de que elas guardam cavernas ainda desconhecidas e pinturas rupestres. A morraria vai até onde a vista alcança e, com base nisso, acredita-se que, em 1912, o marechal Cândido Rondon tenha reconhecido uma área de aproximadamente 100 mil hectares para o usufruto do povo Bororo que habitava o local. Em 1945 essa área foi homologada e reduzida por um decreto estadual para seis mil hectares e em 1951 recebeu o recorte definitivo de 4.706 hectares.
Ao longo dos anos 1950 e 1960, surgiu irregularmente dentro da terra indígena uma vila que hoje tem escola estadual, destacamento de polícia militar, posto de gasolina, igreja, mercearia, açougue e todo o tipo de comércio. Lá vivem cerca de 2 mil pessoas. Primeiro chegaram os garimpeiros, depois os fazendeiros. Durante todo esse tempo, nenhum governo se interessou em desocupar a terra indígena. O lugar virou Distrito de Poxoréu e se localiza a exatos seis quilômetros de uma nova aldeia que está sendo construída por 38 índios bororo que, sob o comando da cacique Maria Aparecida Eurekeudo e orientação do Ministério Público Federal, resolveram sair da Terra Indígena Sangradouro para retomar o território Jarudore, em 2006.
A aldeia nova não foi erguida no local da última aldeia Bororo que se tem notícia. Ela ficava às margens do Rio Vermelho, de frente para o Morro do Mandi. Maria Conceição, 73 anos, mãe da cacique Aparecida, recorda-se que, em 1939, os Bororo foram dizimados. “De repente muitos começaram a morrer. Deve ter sido envenenamento. Nessa época os Bororo saíram daqui. Ficaram apenas três famílias”, diz a septuagenária. “Esse é um morro sagrado para nós. Meu pai conta que nos anos 30 e 40 os índios tiveram uma visão. Apareceu um cocar e gente dançando em cima desse morro. Foi um sinal de que a gente não devia abandonar a nossa terra”, fala Maria Aparecida. O Morro do Mandi é vizinho a um antigo cemitério indígena, também considerado sagrado.
Riscos e ameaças
Longe dali, a nova aldeia fica espremida entre duas morrarias e o terreno arenoso até agora só permitiu o plantio de mandioca. “Para pescar agora a gente tem que ir muito longe. Quando os homens saem, as mulheres ficam sozinhas, é perigoso”, diz Maria Aparecida. Em situações de perigo anunciado, os morros acabam servindo como proteção para os índios. No Carnaval deste ano, por exemplo, eles já tiveram que se esconder no alto da serra diante de uma ameaça contra a aldeia, alvejada por tiros.
Meses antes, João Osmar, genro da cacique Maria Aparecida que fretava seu caminhão a um laticínio de Jarudore, única fonte de renda da aldeia, sofreu uma tentativa de homicídio quando seu veículo foi incendiado por moradores da vila, que pediram carona na estrada. Há um ano e meio, um índio que vivia na cidade foi assassinado. “Já mataram o Elenilson (Bororo), queimaram nosso caminhão, já atiraram na aldeia e ninguém fez nada”, reclama Maria Aparecida.
O administrador da Funai em Rondonópolis, Antônio Alves Dourado, confirma décadas de descaso do poder público em relação a Jarudore e afirma que, graças a Funai, a Polícia Federal visitou os índios e iniciou uma investigação. Mas os índios contam outra história. “A Polícia Federal não está aqui, ninguém está aqui para nos defender e ajudar a retomar a nossa terra”, diz Maria Aparecida.
Segundo Dourado, a proposta da Funai é construir no “curto prazo” uma casa de alvenaria na entrada da aldeia para a Polícia Federal fazer a vigilância da área por turnos, até que o governo finalmente construa um posto (como há em outras terras indígenas) e destaque um funcionário para atender os nativos no local, o que só deve ocorrer após a reintegração de posse da área. “A justiça é lenta e o processo corre em segredo. Só posso te dizer que o caso está bem avançado”, diz Dourado. “Nós não temos emprego lá fora, ficamos com medo dos fazendeiros. Não temos espaço aqui para fazer roça e quando pedimos alimento a Funai diz que não é problema dela”, cita a jovem índia Carolina.
Hoje, a única maneira de a Funai saber o que se passa na terra Jarudore tem sido através do telefone particular de Ronivan Figueiredo de Carvalho Pires, a dona Mocinha, amiga dos índios. A Funai liga para sua residência, ela pega a moto e trafega por seis quilômetros até dar o aviso na aldeia. Por conta dessa solidariedade, seu marido já perdeu emprego na vila de Jarudore e sua filha quase foi reprovada na escola.
A cacique Maria Aparecida garante que, em abril, foi até a Funai de Rondonópolis denunciar o “festival de praia”. Mas em Brasília descobriu que a Funai “não estava sabendo de nada” e agora diz que está em cima da hora para tentar impedir a festança ilegal na terra indígena. “Instalar posto de Saúde para os índios na aldeia não pode porque a área está em litígio, mas fazer festival de praia pode”, constata a cacique.
Para o antropólogo Paulo Isaac, da Universidade Federal de Mato Grosso, embora os líderes da comunidade de Jarudore sejam conhecidos como bandidos e grileiros, tem sido difícil levantar provas concretas contra eles. “Quando o caminhão do João foi incendiado, tentamos mostrar que o crime era federal, mas pelo fato dele não ser índio, caracterizaram o fato como crime civil e obviamente nada andou”, diz o pesquisador. “O assassinato do índio Elenilson, em março de 2007, foi queima de arquivo. A comunidade toda sabe quem são os mandantes e os executores, mas ninguém pode comprovar”, conta.
O Ministério Público Federal (MPF) promete uma audiência pública na vila de Jarudore para agilizar sua desocupação. No início de setembro, duas peritas do órgão estiveram na terra indígena e fizeram novos levantamentos de campo, na tentativa de reunir provas de que a área precisa ser mantida para os índios. “Queremos alegar a existência de cavernas, pinturas rupestres, lagoas, morros e cemitérios sagrados para os índios, além de mostrar como a região tem sido degradada pelos invasores”, explicou Jacira Bulhões, do MPF.
(Por Andreia Fanzeres, OEco, 18/09/2008)