Poder Judiciário tem freqüentado as páginas jornalísticas. Um dia é a proibição do uso de algemas em operações policiais, em outro são os grampos nos telefones do Ministro Gilmar Mendes, mais adiante é a decisão do Supremo de proibir nos três poderes a nomeação de parentes para cargos de confiança em toda a administração pública. Esta última decisão se aplica a familiares de até terceiro grau, o que abrange progenitores, prole, tios, tias, primos, primas, cunhados e cunhadas. É também a que mais interessa quem hoje acompanha a área ambiental no Brasil.
Não sou jurista, mas como cidadão brasileiro, exceto em matéria trabalhista, não me é lícito desconhecer as leis. Logo tenho direito de discuti-las.
Vejamos: o Artigo 37 da Constituição da República de 1988 reza que “A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade” e, também, ao seguinte:
I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei;
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
O leitor corrija-me se eu estiver errado, mas pela leitura do texto acima entendo que o legislador constituinte não proibiu a contratação de parentes para cargos de livre nomeação. Cargos esses que a Lei Magna também chama de funções de confiança e que o mesmo Artigo 37 determina que "serão exercidas, preferencialmente, por servidores ocupantes de cargo de carreira técnica ou profissional, nos casos e condições previstos em lei".
Muito embora seja radicalmente contra o provimento de parentes em funções públicas, entendo que o cargo de confiança ou de livre nomeação constitui exceção flagrante a esse princípio. Com o próprio nome diz, o agente público deve nomear para essas atividades pessoas em quem confia cegamente. Se for sua mãe, seu filho ou seu cunhado, não vejo nisso nenhum problema. Afinal espera-se que pessoas com tão próximo grau de parentesco sejam de absoluta confiança.
Mas caro leitor, antes de esconjurar-me, permita-me progredir no raciocínio. Continuemos a ler nossa Constituição. Vamos a seu artigo 39: "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas”.
Creio estar escondida aí a chave da questão. Profissões do serviço público estruturadas com planos de carreira têm cargos em comissão, mas eles não são de livre provimento. Por exemplo, um comandante de batalhão do Exército é um cargo em comissão, mas sua ocupação é privativa de Tenentes-coronéis e Coronéis daquela força armada. Chefe do Cerimonial do Itamaraty também é um cargo em comissão, mas só pode ser ocupado por um Ministro de Primeira ou Segunda Classe da carreira diplomática. Chefe da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis do Estado do Rio de Janeiro é igualmente um cargo em comissão, mas seu preenchimento é prerrogativa dos Delegados da Polícia Civil daquele Estado.
Por mais que o Presidente da República, Ministros, Senadores, Deputados, Governadores, políticos de outros matizes e Juízes gritem, esperneiem, mandem e desmandem não podem transformar seus parentes em oficiais do Exército, Diplomatas ou Policiais. Só há uma forma de exercer essas profissões no Brasil: ser aprovado em concurso público.
Chegamos ao cerne da questão. O problema NÃO É (assim mesmo em maiúsculas) quem é nomeado para exercer um cargo de confiança, mas sim O QUE É (ou deveria ser) um cargo de confiança. Quando chegamos a essa conclusão simples, a coisa fica fácil. Cargos de confiança são aqueles em que seus ocupantes pensam e traçam as políticas públicas. São, portanto, relativos a posições de alto escalão dos Poderes Legislativo e Executivo, neste último, sobretudo no âmbito dos Ministérios. Por analogia, não são cargos onde se executam políticas públicas, já que esses a constituição reserva para técnicos de carreiras estruturadas e só podem ser providos por meio de concurso público.
Em última análise, se pensarmos com cuidado, os cargos de confiança não pertencem ao político que os provê, mas sim ao povo que elegeu esse político e que, se não ficar contente com seu trabalho (e da turma em quem ele confia), tem a prerrogativa de não reelegê-lo.
Assim é que, ao proibirmos o nepotismo, mexemos na galhada, mas não tocamos na raiz do problema. O Poder Judiciário, por exemplo, pensa políticas públicas ou é um poder eminentemente técnico? Qual é a justificativa plausível para que haja em seus quadros um cargo sequer que prescinda de concurso público para ser preenchido? Como se justifica a criação recente de 861 novos cargos nos Tribunais do Trabalho, no STJ e no TCU (este último sob a alçada do Poder Executivo)? O mesmo se aplica ao Ministério Público e a outras instituições de Estado cujo perfil é técnico e não político.
Uma delas é o recém criado Instituto Chico Mendes. À luz da Lei máxima do país, qual é razão para que não seja criado já um plano de carreira contemplando a ascensão funcional de seus servidores? Podemos debater se o Presidente da Instituição deve poder ser nomeado livremente. É plausível considerar que ele pensa políticas públicas. Podemos até imaginar que um percentual pequeno dos chefes de parques possa ser escolhido entre pessoas de notório saber não pertencentes aos quadros da instituição.
Vez por outra, um botânico renomado, um ambientalista qualificado ou um engenheiro florestal da iniciativa privada podem, assim como os Embaixadores de fora do Itamaraty, arejar a carreira e trazer novas idéias e práticas de gestão salutares. O que não dá para conceber é que TODOS os cargos em comissão do Instituto sejam de livre nomeação, sem respeito a uma progressão profissional com regras claras e previsíveis, baseadas em conceitos de mérito e antiguidade. Em qualquer lugar do mundo instituições sérias estão estruturadas sobre esses dois alicerces.
Nesse sentido, urge fazer do ICMBio uma instituição de Estado ao modelo da Receita Federal, da Polícia Federal, das Forças Armadas e – por quê não? - seguindo exemplos bem sucedidos como o Serviço Norte-Americano de Parques Nacionais (NPS) e o Serviço da Vida Selvagem do Quênia (KWS).
Fora isso, para mim tanto faz se o nomeado é um membro desempregado do partido da vez, um apadrinhado do prefeito, ou se é a mãe do governador. A questão, repito, não é quem é indicado, mas se o cargo pede uma nomeação política ou técnica. Um país sério não pode ter milhares e milhares de cargos de confiança de livre nomeação, mas apenas um punhado deles - aqueles que são afeitos às casas legislativas e às cúpulas dos ministérios e secretarias, que são os que o povo pode desprover direta ou indiretamente por meio do seu voto. Esse é o único caminho para construir um serviço público sério e eficiente.
Para o Instituto Chico Mendes, essa é a hora de ser estruturado como uma instituição com perfil eminentemente técnico. Daqui há dois ou três anos, poderá ser tarde demais e aí vamos ter que conviver com a Mãe Joana tomando conta da casa (que pode ser a instituição como um todo, ou uma centena de unidades de conservação sob o comando de diferentes apadrinhados políticos). Para isso bastará que a nobre senhora seja merecedora da confiança do ministro de plantão.
(Por Pedro da Cunha e Menezes, OEco, 18/09/2008)