O Cerrado ocupa quase um quarto do território nacional, abriga inúmeras espécies de animais e de plantas e empresta terra e água a várias atividades econômicas. No entanto, não recebe a necessária atenção e investimentos públicos para sua sobrevivência. Segundo a Conservação Internacional (CI), R$ 107 milhões foram aplicados pelo Ministério do Meio Ambiente no Cerrado em 2007. Quase tudo serviu ao pagamento de salários. O investimento deveria ter sido de, no mínimo, R$ 227 milhões, aponta a ONG, o que ajudaria a manter e implementar unidades de conservação.
Os números foram baseados em fontes como a Controladoria-Geral da União e a lei do Orçamento Geral da União e serão apresentados no Simpósio Internacional sobre Savanas Tropicais, que acontecerá na Embrapa, em Brasília (DF).
Observando dados oficiais sobre sustentabilidade financeira de áreas protegidas, calculados para 443 reservas federais e estaduais, em todos os biomas, a CI estimou que o governo deveria desembolsar cerca de R$ 5,6 mil para cada quilômetro quadrado protegido, somando R$ 2,7 bilhões. A quantia é o dobro do orçamento do Ministério do Meio Ambiente no ano passado ou menos de 0,5% do que o Brasil investiu em agropecuária com o Plano Safra 2006/2007. Nessa lógica, o Cerrado deveria ter sido beneficiado com pelo menos R$ 227 milhões, mas recebeu apenas R$ 107 milhões em 2007.
“E esse dinheiro cobre basicamente salários. Não existe praticamente nada de investimentos diretos nas áreas protegidas do Cerrado”, reclama Ricardo Machado, diretor programa Cerrado-Pantanal da CI/Brasil.
Já o coordenador de Unidades de Conservação de Proteção Integral do Cerrado e do Pantanal no Instituto Chico Mendes (ICMBio), Sérgio Henrique de Carvalho, afirma que a avaliação da CI não reflete a totalidade do dinheiro aplicado no bioma. Segundo ele, muitos recursos são investidos de forma indireta, por meio de ações como o combate a incêndios e uso de aeronaves. “Muita coisa está pulverizada em ações de âmbito nacional, como o uso de helicópteros e o combate a queimadas e incêndios. Este ano a conta de helicópteros está em R$ 5 milhões, e boa parte disso foi revertida ao Cerrado”, disse.
Carvalho, no entanto, reconhece a pindaíba do bioma, principalmente para o quesito regularização fundiária. O valor do hectare no domínio de vegetação pode variar de R$ 80, em regiões desvalorizadas, a até R$ 5 mil, no Triângulo Mineiro. “O volume (de investimentos) é muito inferior ao necessário, principalmente em regularização fundiária. O custo de terras no Cerrado é muito alto, principalmente pela pressão do agronegócio. Isso dificulta a consolidação e criação de áreas protegidas”, explica.
Desequilíbrio na proteção ambiental
As lacunas na conservação do bioma incluem não só os parcos investimentos e a baixa extensão das reservas ambientais, mas também o desequilíbrio no número de parques nacionais e outras reservas em comparação com a Amazônia, maior formação ecológica nacional.
Até março de 2007, o Brasil tinha 720 unidades de conservação federais e estaduais, sem considerar Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e reservas municipais. Quase 90% delas estão na Amazônia, como mostra o gráfico abaixo. O Cerrado tem 227 espaços protegidos, excluindo da conta APAs e reservas particulares. O número pode até impressionar, mas eles somam menos de 5% dos cerca de dois milhões de quilômetros quadrados do bioma.
Além de ser privilegiada pela caneta governista na hora de decretar novas áreas protegidas e direcionar investimentos, a balança pende ainda mais para o lado da Amazônia com financiamentos e outras formas de apoio internacional, como o Programa Arpa. O recém-criado Fundo Amazônia acaba de receber US$ 20 milhões do governo norueguês, que promete US$ 1 bilhão para o bioma, até 2015.
Do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, sigla em inglês), abastecido por “países ricos”, o Brasil abocanhou US$ 135 milhões nos últimos 16 anos, tornando o país seu maior cliente na área de biodiversidade. Mas uma olhadela nos dados revela que apenas US$ 14 milhões (pouco mais de 10%) foram solicitados pelo governo para conservação e uso sustentável do Cerrado. A Amazônia ficou com US$ 63,5 milhões (47%), alega a Conservação Internacional.
“Ações de conservação na Amazônia são mais fáceis, lá não há muita gente para se opor. Agora, tente criar alguma grande área protegida no sul da Bahia ou no Rio Grande do Sul, por exemplo. Proteger a Amazônia é importante, é claro, e o momento é agora. Mas há o resto do país também”, comenta Machado, da CI.
Fórmula sem combustível
Criar e manter unidades de conservação é uma fórmula usada por centenas de países para proteger suas riquezas naturais, manter fontes de água e auxiliar no equilíbrio do clima global. No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente é responsável pela gestão de áreas protegidas que, juntas, têm tamanho semelhante ao da França. No entanto, recebe 0,1% do orçamento da União, aponta a Conservação Internacional. O dinheiro destinado à área ambiental é inferior ao da maioria das pastas, inclusive da Presidência da República.
Com baixo poder de fogo financeiro, o meio ambiente pouco faz para frear a degradação do Cerrado, maior fronteira de expansão agropecuária das últimas décadas. O bioma responde por 30% do PIB nacional, por mais de 40% da soja, 25% do milho e 20% do arroz, café e feijão. Também produz um terço da carne bovina e quase 20% da suína. “O avanço do agronegócio é bom para o País, mas ruim para o bioma”, comentou Carvalho, do ICMBio.
O descaso governista pode fazer com que o país não reduza tanto quanto deve suas perdas de biodiversidade e proteja ao menos 10% do Cerrado até 2010, como pedem a Convenção sobre Diversidade Biológica e as chamadas Metas do Milênio, ambas das Nações Unidas. Fazer o tema de casa fica ainda mais difícil pelo alto grau de fragmentação do bioma e escassez de estudos. São cada vez mais raras grandes porções contínuas de vegetação. Quase tudo foi comido pelo agronegócio. Além disso, os cerca de R$ 20 milhões previstos pelo GEF Cerrado para meados de 2009 e os estudos disponíveis não serão suficientes para que o Brasil fique em dia com seus compromissos internacionais.
“Cumprir essas metas significa defender áreas realmente críticas, com espécies que podem desaparecer. Se isso for usado como parâmetro, as ações mais imediatas devem ocorrer no Cerrado e na Mata Atlântica, biomas que mais concentram espécies ameaçadas. Mas só temos protegido áreas na Amazônia”, disse Ricardo Machado, da CI.
Tudo isso coloca o Ministério do Meio Ambiente frente a uma sinuca de bico: tem que acelerar seu trabalho desatando o nó da divisão do Ibama para criação do Instituto Chico Mendes e gastará muita saliva com estados e municípios para a criação de unidades de conservação de menor porte.
“O maior desafio é conquistar espaço político e técnico para se proteger o Cerrado. Há estudos preliminares para novas unidades de conservação, mas está tudo parado com a divisão do Ibama e outras mudanças políticas na área ambiental”, arremata Carvalho, do ICMbio.
Riqueza que se perde
As raras pesquisas realizadas no Cerrado apontam entre 300 e 450 tipos de plantas diferentes em cada hectare. Em meio a taxas anuais de desmatamento de fazer inveja à Amazônia, muito pode estar se perdendo. É o que mostra a pesquisa de doutorado da bióloga Divina Aparecida Vilhalva, pela Universidade de Campinas (Unicamp). Ela descobriu que a planta Galianthe grandifolia – Rubiaceae (imagem ao lado), nativa do Cerrado e parente do café, absorve cádmio em grandes quantidades e tem enorme potencial para limpar áreas contaminadas por esse e outros poluentes.
“A espécie foi descoberta há pouco tempo. Nos testes realizados em laboratório, ela absorveu grandes quantidades de cádmio, um metal pesado e muito poluente quando descartado no meio ambiente. Agora estamos testando a absorção de outros contaminantes, como o alumínio”, explicou a pesquisadora.
Usar plantas para limpar a sujeira humana – a chamada fitorremediação - é prática comum em países como Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia. Aqui a técnica engatinha, enquanto as experiências já feitas em campo usaram plantas geneticamente modificadas daqueles países.
“Agora se abre a possibilidade da recuperação de áreas poluídas com uma planta nativa, sem modificação genética. Pesquisas como essa mostram a importância de se aumentar o conhecimento sobre a vegetação do bioma, que infelizmente está desaparecendo”, completou a bióloga.
(Por Aldem Bourscheit, OEco, 18/09/2008)