A partir de 1996, o clima quente do Ceará aliado aos ventos constantes começou a atrair não apenas turistas para sua costa, mas também uma das formas mais conhecidas de aqüicultura: o cultivo de camarão. Agora, o litoral cearense experimenta um fenômeno muito comum na agricultura brasileira: passado o período do boom, o local é abandonado em estado de degradação. De acordo com um diagnóstico sobre a prática da carcinicultura, encomendado pelo Ibama em 2005, há 245 fazendas espalhadas ao redor do estado. Delas, cerca de 60% estão desativadas há meses em virtude da alta do dólar e de doenças que assolaram as produções a partir do quarto ano deste novo século. No lastro da antiga potência econômica, restaram a degradação criminosa do mangue e as alterações em suas estruturas ecológicas.
Impulsionados pela crescente demanda estrangeira por produtos pesqueiros no final da década de 90, empresários e pequenos produtores viram na atividade uma excelente forma de enriquecer. Afinal, a larva do camarão Litopenaeus vannamei, importado do continente asiático, se desenvolvia muito bem em território nacional e rendia altos lucros para seus proprietários. O panorama começou a mudar em 2004, quando a praga mionecrose muscular atacou os cultivos do crustáceo no Ceará e Rio Grande do Norte (outro grande produtor) e começou a matar toda a produção. “A carcinicultura chegou, se apropriou dos recursos naturais, enriqueceu e foi embora”.
A frase de Luciana Queiroz, engenheira e assessora do programa de Gestão Costeira do Instituto Terramar, é o exemplo perfeito do que acontece na região. O quadro tem início na constatação de que, em todo o Nordeste, cerca de 80% das fazendas de cultivo artificial de camarão se encontram em locais onde antes viviam os manguezais. Área de Proteção Permanente (APP) segundo a legislação brasileira, este ecossistema não pode ser impactado sob quaisquer circunstâncias, fato que poderia atrapalhar o desenvolvimento econômico da carcinicultura. “A mistura de água doce e salgada, como acontece no mangue, é perfeita para o cultivo do camarão”, explica Raquel Rigotto, médica e professora do Núcleo Tramas, da Universidade Federal do Ceará.
Besteira científica
Mas o Conselho Estadual de Meio Ambiental do Ceará (Coema) tratou de dar um jeito neste impasse. Depois de uma reunião entre seus membros, foi criada a resolução 02 de 2002, ano em que a atividade explodia no cenário nacional. O texto do artigo 1º do inciso XI é uma carta branca para o desmate. “Apicum: ecossistema de estágio sucessional tanto do manguezal como do salgado, onde predomina solo arenoso e relevo elevado que impede a cobertura dos solos pelas marés, sendo colonizado por espécies vegetais da caatinga e/ou mata de tabuleiro”.
Jeovah Meireles, professor do Departamento de Geografia da UFC, explica o erro científico cometido pelos membros do Coema. Segundo ele, os apicuns são espécies de janelas existentes dentro do ecossistema manguezal absolutamente ricas em nutrientes e microorganismos trazidos pelos períodos de cheia das marés. O espaço é utilizado por toda sorte de animais para a sua alimentação e reprodução, como aves que pousam ali em busca de refeição. “O apicum, em Tupí-Guarani, significa 'áreas inundadas pelas marés'. Está, portanto, associado ao mangue”, diz Meireles.
Com alto índice de salinidade em virtude da falta de vegetação, o apicum é responsável por regular todos os processos bio-físico-químicos do mangue, como tráfego de espécies e abastecimento de nutrientes. Uma vez que o volume de sal em seus limites diminui, as árvores do ecossistema começam a tomar seu lugar. “Este é o ciclo natural do ambiente. Dizer que ele não faz parte do ecossistema manguezal é totalmente equivocado, e trocá-lo por fazendas de camarão significa interromper diversas funções ecológicas vitais”, conta Jeovah.
Clareiras de mangue
O resultado não poderia ser diferente. Além de usarem toda a estrutura do apicum para instalar suas fazendas, os empreendimentos também desmatam grande parte dos bosques de mangue que estão no entorno. Responsável por emitir o licenciamento ambiental da carcinicultura, a Superintendência Estadual de Meio Ambiente do Ceará (Semace) tem uma estrutura precária de fiscalização, o que facilita o trabalho dos proprietários de tanques. Mas não há qualquer estudo que comprove, em números, a diminuição do mangue no estado na última década. “As políticas públicas em defesa dessa estrutura são invisíveis”, explica Luciana Queiroz, do Terramar.
Os dados fornecidos pelo Ibama em 2005, no entanto, ajudam a perceber alguns dos problemas da atividade. Das 245 fazendas analisadas pelos pesquisadores, 14 tinham apenas a Licença Prévia na ocasião. Mesmo assim, dez estavam já em fase de operação. Mas não é só. Com Licença de Instalação em mãos, 68 projetos deveriam aguardar os próximos passos do processo – porém, 33 já operavam irregularmente. Ao todo, 32,7% dos empreendimentos afetaram bosques de mangues e 51,4% destruíram apicuns e salgados (outra característica típica do ecossistema). Em outras palavras, 83% das fazendas visitadas foram construídas em cima de um ambiente rico em biodiversidade e recursos naturais.
A reportagem de O Eco visitou uma fazenda de camarão ainda em funcionamento no rio Pacoti, dentro da região metropolitana de Fortaleza, acompanhado por Jeovah Meireles. Conhecido como “Crevette” (camarão, em francês), o estabelecimento tinha a sua licença de instalação vencida há quatro meses. “A nova permissão já foi pedida à Semace, mas o processo demora mesmo”, explica Mariel Andrade, gerente da empresa. Com a liberação aparentemente garantida, ele respondeu às perguntas com naturalidade e disse que, atualmente, a produção caiu muito. “Não exportamos mais, porque não compensa”, diz.
Olhos atentos, Meireles foi enfático ao afirmar que aqueles tanques foram construídos dentro de áreas de manguezal que mantinham relação direta com o ambiente marinho. “Por volta de 60% dos peixes que estão no mar mantém relações diretas com esse ecossistema, pois vêm se reproduzir, alimentar e crescer. Por isso o mangue é chamado de berçário da vida, já que tem as reações mais complexas das planícies costeiras”, afirma.
Impactos infinitos
Sua importância ecológica é tamanha, que não são poucos os impactos na natureza quando a monocultura do camarão substitui a zona de interseção entre as águas doce do rio e salgada do oceano. Basicamente, a supressão de vegetação causa mudanças estruturais no solo do mangue, o que acarreta em diminuição da biodiversidade. Além disso, usar o apicum gera erosão e assoreamento das árvores, diminuição na produtividade de nutrientes e no terreno destinado ao refúgio e alimentação de espécies da fauna.
Os tanques, feitos artificialmente, criam diques com pedras que impedem a passagem da água do mar. Uma vez abandonados, a área fica exposta ao sol e não tem contato com a água salgada proveniente das marés. Sem esta conexão, a revegetação natural da área torna-se inviável, assim como as trocas laterais entre os bosques. A situação fica ainda mais comprometida em virtude do tempo necessário para a produção de cada leva de camarão. Em média, as larvas precisam de três meses para se desenvolver completamente e ficarem aptas para a venda. Durante este período, o terreno que anteriormente recebia água salgada por apenas três horas diárias, passa a conviver com a salinidade durante noventa dias ininterruptos. A conseqüência? O lençol freático enche de sal e o abastecimento de água fica comprometido.
Apesar do número considerável de pressões, talvez a principal delas seja a poluição nas águas do rio ou em seus afluentes. Na grande maioria dos tanques no Ceará, a água que chega através de canais montados para mudar o fluxo natural das gamboas (braços dos cursos d’água) é despejada sem qualquer tratamento no rio após os noventa dias de cultivo. Com ela, vão todos os materiais químicos, rejeitos e restos de ração usados para a atividade. “E isso ocorre desde o final dos anos 90, quando os laboratórios descobriram como criar as larvas do Litopenaeus vannamei no Brasil. O boom da carcinicultura começou aí”, diz Luciana Queiroz.
Na época da despesca, o risco é ainda maior, já que os produtores comumente usam um produto chamado metabisulfito de sódio na água para realçar a tonalidade avermelhada dos crustáceos. Quando a química encontra o estuário, é comum notar a mortandade de um sem número de espécies que trafegavam tranqüilamente pelo córrego. A vida desses animais corre pergio também quando um dos camarões exóticos cultivados consegue escapar para o rio. Aí, a competição por alimentos se torna intensa.
Embora a atividade mostre impactos evidentes, há quem a defenda. É o caso, por exemplo, do professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da UFC, Rogério Araújo. Segundo ele, apesar de existir captação de água pública sem controle, as conseqüências negativas da prática são questionáveis. “Há outros fatores que contribuem, e muito, para a crise ambiental, como os fossos à céu aberto e a ocupação urbana. Não é possível colocar a culpa toda na carcinicultura. O extrativismo de caju, por exemplo, também acarreta diversos dramas, mas ninguém fala dele porque está em primeiro lugar na pauta de exportação do Brasil”, afirma.
A história do Cumbe
É possível contar nos dedos das mãos há quantos anos a natureza do Cumbe, vila no município de Aracati, a 160 quilômetros da capital Fortaleza, começou a sofrer forte pressão de empresas interessadas em investir no novo mercado. O motivo da escolha era simples: o rio Jaguaribe, o maior do Ceará, é margeado justamente pela vila vizinha à Canoa Quebrada, um dos paraísos turísticos do nordeste brasileiro. A proximidade da praia torna a região um grande estuário, tipicamente coberto por extensa faixa de manguezal. Não à toa, o prefeito de Aracati, Expedito Ferreira da Costa, tem uma fazenda quatro vezes maior do que a região metropolitana da cidade que comanda.
A reportagem de O Eco fez um passeio pelas ruas e dunas do Cumbe há poucas semanas, e percebeu a mudança radical na paisagem. Uma vasta área do pequeno distrito, que há dez anos ostentava bosques de mangue intocados, hoje é ocupada por piscinas destinadas ao crescimento do Litopenaeus vannamei. Enquanto algumas ainda estão em pleno funcionamento, outras permanecem vazias e sem qualquer sinal de recuperação. Apesar da palavra contrária da Semace. “A recuperação das áreas abandonadas é de competência do responsável, no caso o produtor, de acordo com a legislação vigente. A SEMACE vem exigindo essa recuperação através de TAC’s; quando não é atendida adota as providências legais cabíveis, pó exemplo, multas, noticias crime etc.”, defende Herbert Rocha, superintendente do órgão.
O discurso da Semace, curiosamente, é acompanhado de perto por Iane Sampaio, secretária de Meio Ambiente de Aracati. No cargo desde 2007, ela concorda que a atividade ainda não é sustentável em seu município, mas diz que está trabalhando para mudar o quadro. “Com total apoio do prefeito, não liberamos mais anuência para o órgão estadual emitir licenças sem a nossa fiscalização rígida anterior”, diz. Pelo visto, o esforço não vem dando muitos resultados - durante a nossa visita, foi comum notar tanques a pleno vapor, como os do próprio Expedito, e outros esquecidos, sem qualquer recuperação.
O relato de João do Cumbe, professor e ambientalista da região que acompanhou O Eco na viagem ao lado de Jeovah Meireles, é esclarecedor. “Ninguém recuperou nada, deixaram tudo de lado. O aqüífero do Cumbe, que há mais de 30 anos abastece Aracati inteira, ficou ameaçado porque a água salgada invadiu o lençol freático”, diz. Além disso, ele informa que, entre 2000 e 2003, nenhum caranguejo foi encontrado vivo no rio Jaguaribe em virtude da poluição oriunda das piscinas de camarões. “Os pescadores foram muito prejudicados porque perderam seus pontos tradicionais de extrativismo, que são os manguezais”, completa.
Questionada sobre os motivos de tantos trechos com mangue derrubados, Herbert Rocha se esquivou. “A SEMACE não emite licença em área de manguezal, portanto, quem estiver instalado nessas áreas está irregular perante o órgão. Existem processos na PROJUR que tratam de Termo de Ajuste de Conduta com alguns carcinicultores para recuperação de áreas. Caso não sejam cumpridos deverão ser elaboradas notícias crime para encaminhamento ao Ministério Público”, assegura. Ao que parece, a pregada fiscalização não tem sido bem feita.
Por mais que o impacto seja muito aparente, os empreendimentos também sabem ser invisíveis. Eles chegam, usam terrenos e recursos públicos e depois vão embora impunemente. Algumas de suas técnicas já são conhecidas, mas ainda não coibidas. “Desde 1997, os produtores fazem um esquema: bloqueiam o curso dos afluentes dos rios a partir do trecho que desejavam usar. Assim, sem a mistura de água salgada com doce, o mangue morria. Bastava eles dizerem que o ecossistema já estava acabado antes de eles chegarem e pronto, tinham o aval para colocar seus tanques”, finaliza João do Cumbe.
(Por Felipe Lobo, OEco, 17/09/2008)