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bacia do rio Guandu programa de saneamento
2008-09-17

Norma Crud Maciel não tira da memória o dia em que encontrou na bacia do rio Guandu a alga vermelha de nome Batrachospermum. “Ela é exigente, só vive em água com muito oxigênio, sem turbidez. Era uma maravilha quando eu chegava e encontrava um indicador desse”. Técnica da Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente do Rio (Feema) há 45 anos, a especialista sabe que os ventos mudaram para aqueles lados da Baixada Flumimense, onde na década de 70 ela batia ponto para fazer o acompanhamento físico-químico e biológico dos rios: “Hoje não existe mais essa alga por ali, pois a qualidade da água se foi”.

Com o fardo de levar água potável para as torneiras de aproximadamente nove milhões de pessoas – ou 80% da Região Metropolitana do Rio de Janeiro – a bacia do Guandu padece. E para se ter uma idéia do diagnóstico, basta dar uma olhada nas contas da Nova Cedae, companhia resposável pela maior estação de tratamento de água do mundo, a ETA Guandu.

São mais de R$ 18 milhões gastos todos os anos com produtos químicos que transformam água turva em potável. Isso significa que, a cada dia, 318 toneladas de sulfato de alumínio, sulfato ferroso, cal, flúor e seus parentes são despejados no processo de tratamento. Quando a chuva cai com vontade, o número salta para quase 880 toneladas. O suficiente para, em um ano, abarrotar mais de dez estádios do tamanho do Maracanã.

“A qualidade do rio já foi muito melhor”, recorda o engenheiro Armando Costa Vieira, que chefiou a ETA entre 1967 e 1984. “Naquela época usávamos em torno de 30, 40 toneladas de produtos químicos por dia. Quando tinha grandes temporais, isso ficava em torno de 100, 150 toneladas. A gente foi acompanhando a degradação, e ao mesmo tempo que isso aumentava, a dosagem dos produtos também ia aumentando”.

Assim como Norma Crud, Vieira acompanhou de perto a escalada da deterioração. Viu chegar as indústrias, as casas e os novos vizinhos. Em apenas duas décadas o leito do Guandu já dividia espaço com metais, esgoto e lixo. “À medida que a população foi crescendo e tomando conta das margens, o rio foi sendo degradado. Veio o desmatamento, a retirada de areia para construção. Isso tudo influenciou para piorar a qualidade de água bruta”, diz o engenheiro.  

Cenário imperfeito
O Ipiranga, afluente do Guandu: águas escurerecidas pela poluição.
 
“Para escangalhar é rapidinho. Mas para reverter o dano é lento, difícil e caro”, antecipa a antiga funcionária da Feema. Que o diga o pessoal da Coppe/UFRJ. A pedido do governo federal, um grupo de pesquisadores da instituição foi ver de perto os estragos no Guandu. Os trabalhos resultaram num levantamento minucioso do que a bacia carece para voltar a suas origens.

“Você vai cair para trás”, avisa o coordenador do laboratório de hidrologia da Coppe, Paulo Canedo, antes de jorrar uma infinidade de dados. “Aquilo está tão deteriorado que será preciso um bilhão e meio de reais nos próximos 20 anos para se fazer a recuperação”. Deste valor, 15 milhões vão para o gerenciamento dos recursos hídricos, 300 milhões para o reflorestamento das margens e todo o resto – cerca de 80% da bolada – terá que dar um jeito no saneamento básico da região, quase nulo. Leia-se 9,7% de esgoto coletado e 0,6% tratado ao longo dos 12 municípios que a bacia cruza.

“A situação é escandalosa”, esbraveja Canedo. “Por causa disso, você vê que a região fica completamente a serviço dos dejetos humanos”. Afinal, dos 429 mil habitantes que moram na beirada do rio – número do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) – só os habitantes de Paracambi contam com tratamento de esgoto. Mesmo assim, por todo o município, a rede coletora só dá conta de 15% do que é produzido nas residências. O resultado, em números, é de 1,30 metro cúbico por segundo de esgoto descendo rio abaixo todos os dias.

Mas a decadência da bacia não passa só pelos canos. As cidades que mais produzem resíduos sólidos pela região – Japeri e Itaguaí, com 40 toneladas/dia cada uma, Seropédica, com 26 toneladas e Paracambi, com 19 – deixam a prova do descaso a céu aberto. São quase 150 toneladas diárias de resíduos que vão parar em lixões vizinhos ao Guandu e seus afluentes. “Isso precisa ser alterado. Alguns desses lixoes são administrados pelas próprias prefeituras e outros são terceirizados”, denuncia o especialista da Coppe. A maioria das prefeituras alega que já existem projetos de aterros em andamento.

Em defesa
A síntese da degradação da bacia está em três rios que deságuam no Guandu, a 300 metros da tomada d'água da ETA. Por cruzarem municípios com maior adensamento populacional urbano, Poços, Queimados e Ipiranga reúnem toda sorte de poluição, deixando suas águas escurecidas pela sujeira. “Por toda a bacia a coisa é caótica, e esses rios são o símbolo disso”, diz Canedo. “A qualidade da água na bacia está em queda livre”.

Chefe da Divisão de Qualidade de Águas da Feema, Fátima Soares não concorda que a situação esteja tão calamitosa. Mensalmente, o órgão faz monitoramentos dos recursos hídricos do Guandu, e a técnica garante: “Em termos de qualidade, as águas são boas. As concentrações de oxigênio estão dentro da resolução Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), estão acima dos padrões”.

Fátima afirma que os resíduos industriais já não representam perigo, mas admite que a precariedade do saneamento precisa ser resolvida com urgência. “As indústrias hoje estão controladas. O grande problema ainda é a deficiência de infra-estrutura sanitária naquela região toda. O problema do lixo também, a gente tem muitos lixões ali. Mas em linhas gerais a água é boa e perfeitamente passível de ser tratada e distribuída”, ressalta a cada frase.

Segundo ela, o fato de o Guandu receber águas transpostas do Paraíba do Sul faz dele um rio caudaloso e com uma vazão suficiente para amenizar a poluição. Mas a alga vermelha de Norma Maciel parece ter perdido lugar definitivamente para outras espécies menos exigentes em relação ao ambiente. “Hoje a bacia tem comunidade fitoplanctônica típica de ambiente degradado pela matéria orgânica proveniente de lançamento de esgoto”, comenta Fátima, para se corrigir logo em seguida: “Degradada não, impactada”. E prossegue. “Não tem hoje uma biodiversidade que diga que é um corpo d'água excelente, mas com certeza é um rio que mantém a qualidade de água boa”.

O recomeço
A bacia do Guandu, que até 2002, estava entregue à sua própria sorte.
 
Ao longo das últimas décadas, a bacia do Guandu esteve entregue à própria sorte. Indústrias,  casas, lixos, esgotos e areais tomaram conta da região sem que o poder público desse um pio. O jogo só começou a virar junto com o século, quando em 2002 foi criado o primeiro comitê gestor de bacia hidrográfica do estado do Rio, o Comitê Guandu. Formado por setores do governo, da sociedade civil e por usuários da bacia, foi o grupo que começou a cutucar as autoridades para que levantassem da cadeira.

“Antes a bacia ficava por conta do governo do estado e acabava esquecida. Com o comitê, se inicia um trabalho mais perto da região, e hoje nós puxamos por ações do governo aqui. Somos um agente local provocador”, explica o diretor-geral Friedrich Wilhelm Herms. A organização ainda está engatinhando, mas já conseguiu que as atenções se voltassem para o local. Como ocorreu em 2007, quando o então secretário do Ambiente do Rio, Carlos Minc, foi à região anunciar mundos e fundos para os cursos d'água. Fazendo barulho, Minc criou a Área de Proteção Ambiental do Guandu e prometeu o reflorestamento de suas margens com um milhão de mudas plantadas por detentos em regime semi-aberto.

Conforme mostra o Plano Estratégico de Recursos Hídricos da Bacia do Guandu, no entanto, a criação de unidades de conservação pela área ainda é incipiente e tipicamente brasileira na  estrutura: “Embora exista um número razoável de UCs na área do PERH Guandu (19,7%), a maioria não está efetivamente implantada. (...) Tal como no país em geral, a maior parte das UCs não dispõe ainda de Plano de Manejo e Conselho Gestor e sofre com deficiências de pessoal técnico, infra-estrutura e recursos para a gestão”, descreve o relatório.   

Sobre a recuperação das margens, Herms diz que desde que a carreata governamental passou por ali, 200 mil espécimes de Mata Atlântica foram fincadas. Segundo ele, 160 pessoas trabalham hoje na empreitada, entre detentos e pessoas das comunidades vizinhas. E critica o fato de uma ação tão simples ter demorado tanto para ser executada. “Nosso custo é de 22 mil reais por hectare, incluindo plantio e manutenção. É um valor pequeno, não custa caro”.

Mas ele sabe que reflorestar as terras desmatadas é um pingo num problema que se espalha pelos 1.395 quilômetros quadrados da bacia. “O PERH foi idealizado em 2005 e aprovado em 2006. Em 2007 começamos as negociações”, conta o diretor-geral do comitê, para dizer que 2008 é o ano de começar, de fato, a pôr a mão na massa. “Temos 65 programas de ações. Somente o lixo, o esgoto e a água vão precisar de mais de um bilhão de reais. Considerando a importância da região, isso não é nada”.

Mas para a atual conta corrente do comitê os números podem ser salgados. A entidade se mantém com um orçamento de R$ 2 milhões ao ano, originados da cobrança pelo uso da água do Guandu, que começou em março de 2004. Uma recente mudança na lei, porém, promete dar novo fôlego à situação financeira: a partir de agora, a companhia de saneamento que usa os recursos da bacia – no caso, a Nova Cedae – terá que meter a mão no bolso. E isso vai alavancar para R$ 20 milhões a verba anual da organização. Só falta agora arranjar mais 978 milhões de reais para colocar o Guandu nos trinques.

(Por Bernardo Camara, OEco, 16/09/2008)


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