Presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) há pouco mais de 3 meses, o geógrafo Roberto Messias já foi diretor de Licenciamento Ambiental da mesma instituição. Ele trabalha na área ambiental há mais de 30 anos. Nesta entrevista exclusiva ao Globo Amazônia, ele aponta que a questão do desenvolvimento da região amazônica extrapola a questão ambiental e defende o direito do acesso de todos os cidadãos a confortos básicos como a eletricidade.
Globo Amazônia: Sua passagem pela presidência do Ibama já teve dois momentos polêmicos: o licenciamento para a usina de Angra 3 e o da usina de Santo Antônio. Obras desse tamanho podem realmente ter seu impacto ambiental anulado? Messias: Existe alguma atividade humana que não tenha impacto? O ato de tomar banho de manhã, se vestir, se deslocar de um lugar a outro ou ver televisão gasta energia. Portanto houve impacto ambiental. Achar que algo possa não ter impacto ambiental é bobagem. Os 190 milhões de brasileiros não querem voltar a viver em cavernas ou debaixo de árvores. Existe uma necessidade de fazer com que haja efetivamente uma apropriação correta dos recursos que o país tem e a redistribuição adequada para que a sociedade toda possa ter acesso a isso.
Acho um absurdo ter gente que é contra a construção de novas fontes de energia. Ao mesmo tempo, ninguém ousa contestar, por exemplo, que o Luz para Todos é um programa que tem de existir. É um direito básico e fundamental ter acesso à energia elétrica. Não admito que uma pessoa diga que possa haver um cidadão que não possa ter acesso à energia elétrica, nem a roupas ou outras coisas mais básicas.
Então podemos esperar o licenciamento de novas grandes obras na Amazônia? Não se discute, por exemplo, a criação de uma ferrovia entre Manaus e Porto Velho? Messias: Quando se pega os grandes pólos presentes e futuros da Amazônia , pode ser que se chegue à conclusão de que será necessária uma ferrovia, uma rodovia, que inclusive já está parcialmente implantada, ou então uma hidrovia, que seria melhor ainda, já que lá se tem de fazer tão poucas eclusas.
É uma questão mais que ambiental. É o planejamento geral do que nós queremos fazer na região. Queremos a Amazônia com um desenvolvimento local, sustentável, adequado, enriquecendo as pessoas e o país, ou queremos que ninguém toque ali e que fique do jeito que está? Ou queremos tudo destruído? É uma escolha que temos de fazer e temos de fazer um planejamento de qualidade.
Algo que envolve 60% do Brasil não pode ser feito de qualquer jeito. Não pode ser [feito por] gente que não conheça, não pode ser feita por palpiteiro. A Amazônia é cheia de palpiteiros. Dizem bobagem com a maior desfaçatez. Falam as maiores idiotices com a cara mais limpa do mundo, em todos os jornais e televisões.
O senhor poderia citar um exemplo? Messias: Preferiria que não. Mas com isso tudo, quando se fala, por exemplo, da licença do rio Madeira... A Amazônia é um grande baixadão e todos esses rios caem do Planalto das Guianas, do Planalto Brasileiro ou dos Andes. No lugar que eles caem, com essa grande quantidade de água, isso é energia em estado puro. É uma benção. Não há país no mundo que tenha isso que o Brasil tem, mas não pode ser feito de qualquer jeito.
Não podemos sacrificar áreas indígenas ou da população tradicional. Se tem alguém que vai sofrer um dano, tem que ser visto o que é necessário para melhorar sua vida, para que seja um jogo em que todos saiam ganhando. Mas não me venham com esse farisaísmo de “zero hidrelétricas na Amazônia”. Vamos fazer o quê? Usar carvão?
Dados do sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontaram queda do desmatamento entre junho e julho. No entanto, numa comparação anualizada, a devastação segue crescendo. Que comportamento o senhor prevê para o índice de desmatamento? Messias: Vamos fazer todo o possível para que ele continue decrescendo. O desafio é como trabalhar corretamente para isso. Temos que ter um foco muito correto para saber quais são os lugares principais [onde se deve combater o desmatamento]. Acreditamos que estamos no caminho certo. A segunda questão é a da geração de alternativas, o que chamamos de “Arco Verde”, um círculo virtuoso: incentivar, não reprimir, colocar possibilidades, agenda positiva.
O Ibama tem suficientes recursos para fiscalização? Messias: Nunca vai ter se ficarmos pensando só em fiscalização e punição, em quem está fora da lei. Teríamos que pôr um fiscal em cada árvore, em cada hectare da Amazônia. A fiscalização precisa ser intensificada nos lugares onde há a infração à lei e a resistência à legalização. Mas ela tem de estar junta com outros dois movimentos. Um deles é o movimento de legalização. O [ministro do Meio Ambiente Carlos] Minc tem um discurso muito claro: se houver madeira de origem legal disponível no mercado, a pressão em cima do ecossistema e, portanto, da atividade clandestina diminui.
A tendência da fiscalização e do combate à clandestinidade é diminuir na medida em que você tiver uma legalização maior nos instrumentos de regulação e uso. Quando você tem o DOF (documento de origem florestal), por exemplo, que diz onde estão os estoques, onde estão os usuários, e que isso se possa ver pelo computador, sem ter que ir atrás de rotas, colocando tudo no universo legalizado, em funcionamento pleno, estamos dando um passo para ter menos fiscalização.
O tripé é: fiscalização, licenciamento e regulação dos estoques, e conscientização e educação da sociedade. No dia em que o consumidor brasileiro não comprar mais a madeira ilegal da Amazônia, metade da guerra estará ganha. E nesse ponto o portal [Globo Amazônia] é importantíssimo porque ele deixa de ser uma coisa só da Amazônia para partir para os usuários, que é todo o resto do Brasil.
A grande pressão sobre o desmatamento da Amazônia não é interna, é externa. Os agentes de desmatamento vêm de outra região, os recursos e os mercados também são de outra regiões.
O Ibama vai fazer novas operações de grande porte na região? Messias: Certamente vai haver. Elas são muito simbólicas. Têm o valor de levar para a região a presença do Estado como defensor do interesse comum do país. Mas o trabalho não se esgota nessas operações. Tem que haver a repressão e depois a criação de oportunidades e perspectivas.
A exploração de madeira acontece à luz do dia. Por que é tão difícil interceptar os carregamentos de madeira ilegal? Messias: Imagine um caso surrealista – colocarmos barreiras que impeçam toda a madeira cortada de chegar ao mercado consumidor. Daí partimos para estocar toda a madeira apreendida. Ela vai voltar e refazer a floresta? Não - já está destruída. A estratégia para a defesa da Amazônia se baseia, é claro, num pilar claro e forte, que é a fiscalização, mas, ao mesmo tempo, tem que primar por dar os caminhos para a legalidade da situação.
A Amazônia é tão grande que permite que haja planos para fazer a retirada de até 12 árvores por hectare a cada 30 anos. É uma maravilha de recurso que a gente tem, porque é muito grande. Se fosse um pedaço pequeno, não daria para manter um fluxo de retirada sem que houvesse empobrecimento no longo prazo. Mas com o tamanho da Amazônia, pela escala, você consegue fazer isso.
Um relatório do Imazon aponta que o Ibama tem dificuldade em cobrar multas e dar destinação adequada ao material apreendido. Por que isso acontece? Messias: Isso acontecia porque a Lei de Crimes Ambientais dava brechas para malandragem, protelação e firula jurídica. Agora há um decreto novo, assinado em julho pelo presidente Lula, que reduz as instâncias de recursos e os prazos, e a gente pode fazer uma cobrança mais eficiente. Outro lado é o das manobras protelatórias. Aí há um lado profundamente injusto quando se faz uma punição, porque empresas maiores, setores organizados, quadrilhas mais bem organizadas, têm advogados muito bem pagos que usam estes artifícios.
O que podemos fazer é uma caracterização das infrações o melhor possível e ter um arcabouço jurídico sólido, como é o da procuradoria do Ibama hoje. Na área técnica, estamos dando um salto qualitativo muito grande. Quando o fiscal for a campo, ele já vai com as informações georreferenciadas, com a caracterização do crime. Ele vai ter, online, informações de como caracterizar melhor o crime, para ter o laudo o mais protegido possível para não ser derrubado depois por esses artifícios jurídicos. Evidentemente, temos uma meta: passar de 2% das multas arrecadadas, que é o que chega a ser pago finalmente, para 50% até o próximo ano.
A lei não obriga que autuações sejam publicadas? Messias: Hoje temos as autuações e o andamento dos processos de licenciamento ambiental no site do Ibama. Estamos organizando o cadastro para que todas as empresas que tenham alguma autuação estejam no banco de dados e não tenham acesso a outros benefícios, inclusive a licenças ambientais. Isso está em processo de organização. A empresa foi multada? Então que não peça licença. O que precisamos é dar músculos ao nosso sistema, para que mostre áreas embargadas, multas aplicadas. Nossa meta é começar 2009 com isso implantado.
O Ibama faz operações com base nos dados de desmatamento do Inpe? Messias: O acompanhamento [desses dados] é constante. Eles são muito importantes para o planejamento da fiscalização. O passo seguinte é a mobilidade dos fiscais, manter pessoas para fazer o combate ao fogo. Temos, por exemplo, o Prevfogo. Das 36 cidades que pediram moratória em dezembro de 2007 por causa das queimadas, a maioria já tem brigadistas contratados para as estações secas, que ficam com os aparelhos na mão, prontos para quando aparecer fogo.
Nossa reportagem esteve falando com escritórios do Ibama na Amazônia e alguns deles estão aguardando ordem de fechamento. A presença do Ibama vai diminuir na região? Messias: Estamos querendo fechar para fortalecer. Veja a lógica: há lugares com grandes frentes de desmatamento. Nesses lugares, os escritórios precisam ser fortalecidos. Em outros, a pressão é menor e há uma ou duas pessoas sem as mínimas condições de trabalho. Vamos colocar essas pessoas onde as pressões são maiores e há maiores condições para trabalharem. Pode haver alguns lugares que não tinham escritório e passarão a ter, e outros que tinham e passarão a não ter.
O grande esforço é para que todos se tornem mais fortes. Vamos ter um concurso no final do ano para 225 vagas e uma parte delas será para reforçar os escritórios e todo o resto - fiscalização, licenciamento e regulação. Até o fim desse mês estará batido o martelo sobre quais escritórios vão ficar.
O que o senhor acha de um aplicativo como o Amazônia.vc, que coloca de forma clara os dados de desmatamento e queimadas do Inpe de desmatamento e queimadas? Messias: Acho excelente. As informações, na medida em que elas são geradas em grande velocidade, passam a ter uma dificuldade de organização. Temos uma quantidade de bancos de dados de entidades, grupos, empresas e pessoas, mas esses dados não estão uniformizados. Esse é um desafio. Outro dia fui no Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia) e fiquei de boca aberta com a quantidade de informação da melhor qualidade que eles têm. O Inpe tem outro banco de dados espetacular. Os estados agora estão organizando seus bancos de dados, como o Mato Grosso, por exemplo. Temos um desafio para colocar esses bancos todos para conversarem entre si.
Esse instrumento de abrir um portal em que as pessoas possam vir com suas dúvidas e conhecimentos, e conversar, é fundamental. E está ligado à questão da "disponibilização". Será que os dados viram informação quando a gente os organiza? Será que eles vão ser disponibilizados para quem realmente precisa? Quem é que precisa? Os agentes econômicos, que vão precisar da informação para planejar seus investimentos e a população local que é a vítima da destruição. Eles podem ser vítimas do desenvolvimento, ou ganhadores, se fizermos as coisas da maneira correta.
O Ibama tem dificuldade de acesso a informações sobre a Amazônia? Messias: O Ibama tem dificuldade de organização. O Ibama tem, por exemplo, uma quantidade de dados sobre desmatamento e, com o Arco de Fogo, sobre essa questão do combate aos incêndios florestais. Agora, a grande dificuldade é transformar isso numa ferramenta gerencial.
O que impede que se melhore o uso das informações? Falta de recursos? Messias: Falta de recursos é o menor dos problemas, por incrível que pareça. A questão não é de dinheiro. Por muito menos já se poderia ter feito coisa muito mais “disponibilizável”. Minha visão cidadã é que há uma quantidade imensa de dados mal utilizados e que, em geral, as instituições são fechadas e conversam pouco.
(Por Dennis Barbosa,
Globo Amazônia, G1, 10/09/2008)