Neste mês, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) se tornou o palco de um dos mais importantes debates sobre a questão indígena já realizados no País. Os 11 ministros do STF estudam a legalidade da homologação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, localizada no nordeste do estado de Roraima. O centro das discussões é a demarcação de uma área contínua de 1,7 milhão de hectares de reserva, na qual vivem cerca de 20 mil índios de diversas etnias, a maior parte dos quais apóia a delimitação sem interrupções. Criadores de gado, plantadores de arroz e outros grupos indígenas e não-indígenas são contra.
Para a professora Dominique T. Gallois, atual coordenadora do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII) da USP, o debate histórico é muito positivo, porém revela também muitas idéias ultrapassadas sobre o indígena - presentes não só na sociedade como na própria academia. Foi justamente para jogar novas luzes sobre a história dos índios e do movimento indigenista no meio acadêmico que surgiu o NHII, em 1991. “O surgimento do núcleo teve uma dimensão política extremamente importante para a época, pois estávamos com a Constituição recém aprovada e os índios tinham adquirido direitos definitivos sobre suas terras”, explica ela.
De fato, a Carta Magna promulgada em 1988 assegurou aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Era o momento propício, diz a professora, para se modificar no meio acadêmico a idéia que se tinha a respeito da história dos índios. “Sentíamos que era necessária uma revisão de inúmeras concepções populares sobre os índios como, por exemplo, a de que eles estão fadados a se integrar”.
Segundo ela, estudar a história indígena e das instituições indigenistas, desde o tempo da Colônia até hoje, era algo fundamental para se mostrar a transformação e a permanência desses grupos, numa perspectiva menos pessimista do que a da simples “aculturação”. “O grande problema é que o senso comum sobre o índio continua o mesmo de alguns anos atrás: quando alguém vê um índio macuxi (etnia predominante na área da reserva Raposa Serra do Sol) com havaianas, relógio de pulso e roupa, já se diz que ele não é mais índio, e se questiona o porquê de tanta terra para eles”. Para ela, isso significa ignorar o que é perene nesses povos – suas formas de organização social, política, de ocupação do espaço, de conhecimento cosmológico sobre a sua área – como também desconsiderar seu poder de adaptação e articulação. “Renegamos a essas populações a capacidade de produzir o novo, de pegar conhecimento do mundo a volta, do mundo dos brancos, de assimilar e produzir algo novo”, explica ela.
Etapas
O primeiro grande projeto do NHII durou até 1995 e consistiu em um extenso levantamento sistemático de toda a documentação existente sobre índios nos arquivos públicos de todos os estados. Desse trabalho, saiu um guia de fontes que até hoje orienta estudantes de graduação, mestrado e doutorado. “Além disso, através dessa pesquisa, conseguimos localizar pessoas em todos os estados que se interessavam pelo tema, e que depois continuaram com esse trabalho de pesquisa. Isso permitiu criar uma rede de pesquisadores muito interessante, que até hoje continua mobilizada”, diz.
O passo seguinte foi aprofundar esse trabalho para uma maior variação de fontes, incentivando reflexões sobre diferentes formas de abordar a história indígena. Para tanto, além das fontes documentais, os pesquisadores foram atrás de registros da tradição oral dos diversos povos – o chamado “conhecimento indígena”, como chama a professora Dominique – procurando trabalhar esses dois registros de maneira articulada. “Disso resultaram vários trabalhos e teses cujo objetivo foi mostrar que a história dos índios não é apenas aquela história contada por nós como também a contada por eles, e que a gente pode interpretar fontes históricas de uma maneira muito mais rica se partirmos de concepções antropológicas sobre formas de organização social, a maneira como cada uma dessas sociedades se posiciona no tempo, no espaço, seus discursos”, diz.
Redes Ameríndias
A etapa seguinte durou de 1995 até 2002 e se desenvolveu em torno de pesquisas de campo sobre as sociedades indígenas localizadas na região norte do Brasil, na fronteira do País com Venezuela, Suriname e Guianas, em parceria com pesquisadores dessas regiões, trabalhando principalmente aspectos lingüísticos e etnológicos. Uma das principais constatações a que chegou esse extenso trabalho, diz a antropóloga, foi mostrar que as diversas fronteiras ali existentes (tanto tribais quanto dos Estados) não eram limites rígidos, mas sim lugares de construção dinâmica de identidade.
“O senso comum diz que essas são sociedades estão supostamente congeladas e com fronteiras bem delimitadas. Porém, todas as pesquisas feitas nesse período mostraram que essas sociedades, ao invés de serem grupos fechados e isolados entre si, estavam diante naquele região de redes de troca extremamente importantes, não só transnacionais como também translinguisticas, grupos que falam quatro, cinco línguas”, conta a pesquisadora. “E essa crítica que fazemos a idéia de etnias fechadas é absolutamente indispensável para o setor público e para as políticas públicas para aquela região”, diz ela.
Segundo ela, essa abordagem das redes será o eixo da continuidade das pesquisas, o chamado Projeto Rede Ameríndias, que foi recém-iniciado em 2007. Nessa nova etapa, muito mais importante do que estudar os índios como sociedades específicas será analisar sua inserção nas dinâmicas das diferentes regiões pesquisadas e perceber como se estruturam, por exemplo, as redes de produção e circulação de conhecimento das populações nativas entre elas e com os grupos não indígenas ao redor. “No passado, muitas políticas indigenistas que tinham por objetivo assimilar o índio os levaram, por exemplo, a criação de gado. Hoje os índios criam gado também. Isso não significa que eles estejam aculturados, mas sim que se integraram a uma nova dinâmica de trocas daquela região”, diz ela. “Não existe mais o índio isolado. Na prática, essas populações não só estão articuladas com com redes que as conectam ao mundo, como também produzem saberes articulados entre si”.
(Por Francisco Angelo, USP online, 10/09/2008)