Às margens do rio Spree, na capital alemã, toneladas e mais toneladas de lixo coletadas nas ruas de Berlim são devolvidas à cidade em forma de energia limpa. O que parece mágica é resultado de anos de investimento do governo alemão - feito sob pressão da opinião pública - para reduzir a emissão de poluentes dos incineradores. Hoje, o medo da poluição provocada pela queima do lixo acabou. “Até o Partido Verde, que era estritamente contra os incineradores, agora enfatiza a importância da contribuição da energia do lixo na Alemanha”, diz Susanne Rotter, engenheira e professora do Instituto de Tecnologia Ambiental da Universidade Técnica de Berlim.
Vinte anos atrás, os alemães temiam, sobretudo, a dioxina – substância cancerígena então fartamente liberada durante a queima do lixo. Com a adoção das novas tecnologias, no entanto, o país conseguiu, somente entre 1994 e 2000, reduzir essas emissões em 90%. Atualmente, existem 70 incineradores em operação na Alemanha. Além de queimar 17 milhões de toneladas de lixo por ano, eles ainda fornecem o vapor que as termelétricas usam para produzir 10% de toda a energia renovável do país.
Em Berlim, essa “energia do lixo” é produzida em duas instalações, localizadas no bairro de Ruhleben, ao norte da capital: a incineradora da BSR (companhia de limpeza urbana do município) e a usina da Vattenfal. As duas ficam em margens opostas no rio Spree. Mas têm uma conexão direta: um duto de cerca de 250 metros, que leva o vapor produzido pela queima do lixo da BSR diretamente para a Vattenfall, que o converte em calor ou eletricidade. Construído em 1967, o incinerador da BSR fez uma reforma completa em seu setor de filtragem há cerca de doze anos. Com os novos equipamentos, como filtros de manga e neutralizadores de gases ácidos, conseguiu reduzir em 90% os níveis de poluição.
“Submersa em lixo”
Até os anos 60, porém, quando começaram a aparecer alguns modelos bem simples, ninguém falava em filtro na Alemanha. E levaria ainda vinte anos até que o tema ganhasse destaque, com a confirmação pelos cientistas de que 90% das emissões de dioxina vinham dos incineradores. A má notícia chegou justamente quando a Alemanha estava começando a ficar “submersa em lixo”, como lembra a engenheira ambiental portuguesa Margarida Nogueira, assessora para assuntos estratégicos da BSR.
Era preciso achar uma saída. “Como os aterros e incineradores não tinham mais capacidade, houve um grande movimento do governo para construir novos incineradores. Mas isso provocou forte reação da população”, conta a engenheira. A pressão, lembra Margarida, obrigou o governo a investir pra valer em pesquisa. Só então começaram a surgir os moderníssimos equipamentos de alta tecnologia para o setor.
Para o terceiro país mais rico do planeta – que não queria (e não quer) dar um freio no consumo – parecia mais fácil pagar por uma tecnologia de ponta do que reduzir a produção de lixo, hoje em torno de 400 quilos per capita por ano. Em meados dos anos 90, a Alemanha finalmente aprovaria uma rigorosa legislação para impor limites à poluição provocada pela queima do lixo. Mas o país não queria vizinhos que continuassem a poluir. E começou a pressionar para que a União Européia adotasse novos padrões para toda a comunidade.
A pressão foi reforçada por países como Holanda e Suíça, que também têm grande número de incineradores. E acabou dando certo. Em 2000, a UE adotou normas rígidas para controlar os incineradores da região. Um cuidado que levou mais de cem anos para ser tomado, já que a Europa começou a queimar seu lixo ainda no século 19. Na Alemanha, quem não se adaptou às novas leis teve que fechar as portas. Mas alguns incineradores, como o da BSR, conseguiram se modernizar e sobreviver. “Eles cumprem a legislação e estão claramente abaixo dos limites de emissões”, diz Sussane Rotter sobre a usina que queima metade do lixo da capital alemã.
Conta salgada
O processo, feito em temperaturas em torno dos mil graus centígrados, elimina 70% do lixo. Os 30% restantes se transformam numa mistura de cinzas, pedrinhas, vidros e metal. Parte desse material vai para a construção de prédios ou estradas. O sistema de filtragem, por sua vez, deixa resíduos tóxicos, que têm que ser guardados em aterros subterrâneos ou em minas de sal. Mas, segundo Susanne, esse material representa apenas 1% do lixo incinerado.
Para a professora, apesar de a incineração ter hoje um custo elevado, a longo prazo vale muito mais investir na queima do que no aterro sanitário – uma opção mais barata, “mas que para as futuras gerações vai sair muito cara”. E a conta já começou a ser paga. Como lembra a engenheira Margarida Nogueira, os aterros sanitários a céu aberto foram proibidos na Alemanha em 2005. Mas seu custo ambiental ainda será lembrado por muito tempo.
Só a BSR terá que gastar 500 milhões de euros nos próximos 40 anos para controlar os três aterros desativados em Berlim, com cuidados que incluem a retirada regular do gás metano, altamente explosivo, e o controle de possíveis infiltrações nos lençóis freáticos. “Como não existe milagre que transforme o lixo em oxigênio, é preciso avaliar todas as opções para saber o que é melhor para cada país”, pondera Margarida.
No Brasil, pesquisadores já desenvolveram o protótipo de uma usina de incineração, no campus da UFRJ, no Fundão, que usa um sofisticado sistema de filtragem totalmente nacional. O que pode vir a ser uma boa alternativa para a redução dos aterros sanitários no país. “A questão é assegurar dinheiro suficiente para pagar pela tecnologia apropriada. Se você realmente combina com a alta eficiência, pode ter retorno com a eletricidade obtida”, diz Susanne, lembrando que já há economias em crescimento investindo nos incineradores como uma solução. Entre elas, a China.
(Por Cristiane Ramalho, OEco, 08/09/2008)