Após alguns anos de prevalência do pensamento e prática neoliberais, percebe-se em nosso país, ainda que de modo incipiente, a retomada de uma consciência do sentido de nação, a partir das discussões que vêm se desenrolando sobre as Telecomunicações, a Vale, o Pré-Sal, para ficarmos em alguns exemplos mais contundentes. E é na esteira das discussões em torno da exploração do pré-sal brasileiro que o Correio da Cidadania entrevistou o economista Carlos Lessa, presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES) entre janeiro de 2003 e novembro de 2004, a fim de debater este e outros importantes temas da atual agenda nacional.
Para o professor da UFRJ, o pré-sal já começa a trazer benefícios à sociedade brasileira, pois está reinaugurando um espaço vazio das discussões públicas. De acordo com Lessa, o presidente Lula está correto em marcar uma posição de direcionar os lucros com a exploração petrolífera para programas sociais e não tornar o Brasil mero exportador de óleo cru.
A respeito da atual gestão do BNDES, Lessa mostra dúvidas sobre a independência e força de Luciano Coutinho à frente da instituição, pois não sabe se a equipe que o cerca lhe confere liberdade para ações mais nacionalistas, como uma eventual reestatização da Companhia Vale do Rio Doce. O economista aponta ainda para o fato de que se vive no país um momento que pode ser especial no sentido de se reavivar a participação popular nas grandes lutas do país, oportunidade que a população precisa aproveitar, de modo a começar a transformar seu futuro.
Correio da Cidadania: Como o senhor tem avaliado nesse momento o governo na condução das grandes pautas políticas da nação?
Carlos Lessa - O pré-sal é a primeira vez que neste governo um tema da nação é pautado como central, pois acho que em matéria de energia elétrica houve um arremedo da privatização do FHC. Sendo assim, não houve nenhuma decisão importante com respeito às recomendações da Petrobras feitas a esse governo desde seu primeiro ano.
Creio que a discussão do pré-sal está muito bem colocada e vejo que a proposta do presidente Lula tem quatro dimensões: a primeira é a idéia, extremamente importante, de não ser exportador de óleo cru, mas sim de derivados de petróleo. Pelo seguinte: primeiramente, porque se retém no Brasil o produto do valor agregado e, principalmente, é muito ruim virar supridor de óleo num mundo em que a geopolítica do petróleo vale tanto, inclusive a destruição de países. Portanto, acho saudável anunciar desde já que o Brasil não será exportador de petróleo, e esse foi um ponto em que o presidente bateu o pé, algo que considerei uma excelente decisão.
O segundo ponto foi a maior densidade dada a uma decisão que o próprio presidente tinha tomado desde seu primeiro ano: reorientar a política de compras da Petrobras, ou seja, de máquinas e equipamentos, para o mercado interno. Em 2003, por exemplo, a Petrobras fez encomendas à indústria naval, e tal orientação tem sido firme no atual governo. O que o presidente decidiu é que tudo o que venha a acontecer na cadeia do petróleo deve se refletir sob a forma de um desenvolvimento industrial brasileiro, como cargueiros de petróleo e embarcações especializadas. Temos envolvidos nesse processo os equipamentos de perfuração, que indicam um desenvolvimento eletrônico relevante, há também a alvenaria pesada para todas as instalações, tal como refinaria, e há ainda a indústria de componentes mecânicos, extremamente estimulada pela presença da cadeia do petróleo. Isso é um ponto a meu ver muito firme e positivo do Lula em relação ao pré-sal.
O terceiro ponto, que me agradou bastante, é a orientação de que os lucros devam ser direcionados para a melhora do nível educacional do Brasil. Acho isso corretíssimo, não por acreditar nessa bobagem de que educação gera emprego, mas por crer que ela é fundamental para a construção do futuro. Devemos ter gerações cada vez mais preparadas para o processo industrial, a qualidade da nossa educação está muito ruim, péssima, e inverter essa tendência me parece altamente positivo.
O quarto ponto é a reiteração de que toda a área do pré-sal que não foi concedida em nenhum leilão é propriedade da União. Isso está em artigo da Constituição, mas, como ela não é respeitada, é importante ser reforçado.
Por trás de tudo isso, está a idéia de se discutirem as atuais concessões de exploração do pré-sal e aumentar a participação especial do governo, que hoje está em 40%. Acho muito positivo e interessante que o presidente tenha lançado tal idéia, pois, se não me engano, a questão do petróleo é entendida com muita facilidade pelas pessoas. As pessoas comuns perceberam que o Brasil esbarrou num eldorado e pensam: "ou ele é nosso ou ele é nosso".
Portanto, acho que a idéia de o Estado ser o grande organizador e a sociedade ser beneficiária desse processo irá mobilizar bastante o país.
No entanto, esse é o ponto alto, mas também há o lado da política externa brasileira. Nós fizemos um esforço muito grande para criar o G-20, pra resistir a Doha, e depois vemos o país defender a proposta norte-americana, não sei o que ocorreu.
A verdade é que o governo Lula é uma moeda de duas faces: uma é a neoliberal, que continua a fazer o BC elevar a taxa de juros, com taxas cambiais perigosas para o país. Por outro lado, há uma retomada no investimento, e agora, com o pré-sal, temos um tema que realmente é um divisor de águas. Vejo como muito positivo esse momento que vivemos. Espero que volte a mobilizar a imaginação e a militância do povo, pois, caso contrário, o cenário não muda.
Quanto às discussões sobre o Pré-Sal, como o senhor tem visto os debates acalorados em torno das descobertas, essencialmente no que diz respeito à criação de uma nova estatal? Pretende-se alijar a Petrobras do processo?
Não há maneira de a Petrobras ser alijada, pois é a única empresa do país que possui estrutura para explorar o pré-sal. Mesmo que se crie outra empresa, esta seria só uma gestora de patrimônio, mas que nunca terá uma estrutura técnica para executar o serviço completo, e nisso ninguém pensa.
O que acontece com a Petrobras é muito simples. O Fernando Henrique vendeu 180 milhões de ações e reduziu a participação do setor público de 84% para 40%. Dessas 180 milhões de ações, apenas 25% estavam no Brasil, com os cotistas daqui que optaram por ações da Petrobras. Foram mais de 300 mil brasileiros que fizeram isso. Os outros 75% de ações, entretanto, foram para a bolsa de Nova York.
Hoje, quando a Petrobras paga 27 bilhões em dividendos, cerca de 45% vão para o exterior. Para se ter uma idéia, a Petrobras paga em folha 10 bilhões, enquanto que para a bolsa de Nova York são remetidos 13 bilhões. Esse é o problema.
De toda forma, acho interessante ver certas pessoas agora virarem defensores da Petrobras. Muito interessante, porque nunca defenderam a Petrobras nos leilões de exploração da União, não a apoiaram quando acabou o monopólio do petróleo, quando acabou a Petroquímica, mas agora vêm a público defendê-la em nome de 300 mil brasileiros. Isso é uma mentira, o George Soros sozinho tem mais ações, cerca de 800 milhões de dólares aplicados individualmente.
A Petrobras está muito privatizada num certo sentido. Sempre defendi que o Brasil deveria recomprá-la. Acho que o Banco Central faria um ótimo negócio se comprasse ações dela no exterior, seria uma aplicação financeira bem melhor que investir no tesouro americano. O petróleo vai subir de preço ou estará sempre valorizado, sendo assim, é uma aplicação absolutamente firme. Portanto, creio que o BC poderia usar uma parte de suas reservas e comprar essas ações.
Aliás, o conceito de dívida pública deveria ser modificado no Brasil. Deveriam incluir no conceito de dívida externa as ações de estatais que têm valor de mercado e liquidez. Na hora em que se fizer isso, a dívida líquida cai e as contas do tesouro se aliviam. Haveria um efeito extremamente positivo, uma mudança de conceito, mas o Mantega não consegue levar nada disso adiante, não sei o que acontece...
Ultimamente, tenho percebido sinais de que o Brasil está voltando a discutir o próprio Brasil e acho que o pré-sal já tem esse mérito. Em Juiz de Fora, onde estive para uma palestra da Semana de Engenharia, fiquei muito bem impressionado com o grau de presença e atenção sobre o futuro do país. Acho que as discussões estão renascendo, e aqui mesmo se pretende debater entre os engenheiros se o pré-sal é nosso ou deles.
As telecomunicações foram símbolo da inauguração do processo de privatização de estatais por parte do governo FHC. O que o senhor pensa a respeito dessa fusão da Oi com a Brasil Telecom, ela é realmente oportuna para atender aos interesses da população no setor?
Olha, não estou muito a par da negociação, mas em princípio gosto da idéia, pois creio que devemos ter um protagonista brasileiro forte no setor. Portanto, vejo positivamente. Lamentei muito quando se leiloou a Embratel e ela caiu em mãos de grupos estrangeiros, inclusive a Empresa Brasileira de Satélites.
Não acho ruim, em princípio, um parceiro brasileiro forte no setor, mas não conheço os detalhes do jogo, não tenho como analisar profundamente a operação.
De qualquer maneira, acho que o BNDES, ao bancar a operação, tinha em mente a necessidade de se ter um ator brasileiro forte no setor.
Alguns analistas advogam a tese de que a fusão das teles seria importante para atender às populações das regiões mais distantes, vez que somente uma grande empresa teria infra-estrutura para nelas fazer os investimentos necessários. O que o senhor pensa disso?
Para falar a verdade, não tinha conhecimento desse pensamento. Não estou acompanhando o processo tão de perto, então não tenho uma posição clara sobre esse ponto.
No entanto, de acordo com o que sei, as telecomunicações brasileiras não tem tanta deficiência e tampouco possuem um nível de serviço tão baixo, mesmo em regiões distantes.
De qualquer maneira, o senhor encara positivamente os vultosos empréstimos do BNDES programados para essa operação.
Esse discurso neoliberal é fariseu. Todo o processo de privatização pelo qual passamos foi conduzido na presença do Estado, que fez favores monumentais aos investidores, com empréstimos de pai para filho por parte do BNDES, em condições incrivelmente favoráveis.
O que aconteceu com a Vale do Rio Doce é impressionante. Ela foi sub-avaliada de maneira brutal. Ainda bem que os fundos de pensão dos trabalhadores acabaram fazendo outra opção, mas, como presidente do BNDES à época, percebi que ela iria para as mãos dos japoneses.
Só os 500 milhões de dólares que apliquei como presidente na Vale, em pouco mais de 10% de suas ações, renderam mais de 2 bilhões de dólares. Essa posição nacionalista fortalece mais o Brasil a meu ver.
A propósito, como tem avaliado o desempenho dessa importante instituição de nosso país, essencialmente agora, com a gestão de Luciano Coutinho? Tem sido pautado por um projeto de nação?
Eu conheço razoavelmente bem a cabeça dele e o acho nacionalista. Entretanto, não sei se ele como presidente tem o mesmo raio de manobra que eu tive. Quando assumi o BNDES, era reitor da UFRJ e, ao ser chamado pelo Lula, pedi duas condições: que ele escrevesse para a faculdade onde trabalhava a fim de me liberar, pois como reitor eleito não queria abandonar o cargo, e também pedi para nomear toda a diretoria. E o Lula me permitiu isso. Exceto um diretor, que foi escolhido por ele próprio, mas que era ex-aluno meu. Quer dizer, pude escolher 90% da equipe. Tinha uma diretoria extremamente coesa, e não sei se Luciano Coutinho dispõe do mesmo.
Além do mais, o conselho administrativo incluía representações de diversas forças produtoras da sociedade, o que ajuda a dar um direcionamento distinto às políticas da instituição.
Anteriormente às últimas eleições presidenciais, o senhor advogou a tese da estatização da Varig, em meio à crise que se aprofundava na empresa e em entrevista a este mesmo Correio. Como o senhor vê hoje essa situação, diante de uma empresa envolta em uma série de processos judiciais que envolvem fundos estrangeiros e o governo brasileiro?
É verdade, recordo-me bem. Estive trabalhando com minha equipe nesse caso e, após alguns estudos, concluímos que, com um aporte de 500 milhões de reais, o governo brasileiro resolveria os problemas da Varig e ela ficaria aqui, sendo do país.
A Varig era um símbolo do Brasil, gerava 17 mil empregos, mas mesmo assim tudo isso foi perdido. Hoje, seus ex-funcionários são contratados por companhias internacionais, vivem trabalhando pelo Oriente Médio...
Propus que o BNDES comprasse ações da Varig para que ela ficasse com o governo brasileiro, porém, a idéia enfrentou muitas resistências no governo. Por tudo isso, vejo com tristeza sua atual situação, pois poderia ser um grande patrimônio brasileiro.
O senhor ainda acredita na estatização da Vale? Há condições políticas para esse processo?
A Vale é uma coisa complicada. É uma mineradora brasileira, mas que se comporta como uma grande empresa internacional, como se não fosse daqui.
Quando fiz a opção de comprar ações dos funcionários da Vale, a fim de evitar que a Mitsui as comprasse e assim passasse a ter poder de veto nas decisões da empresa, foi justamente para combater essa idéia de perder o controle sobre uma região importante da mineração para estrangeiros.
O governo deveria ao menos investir no sentido de ter mais ações na empresa e assim ter condições de exercer controle sobre suas decisões também. A Vale está no mundo inteiro, no leste da Europa, nos EUA, pela América do Sul, Japão, China, e de alguma forma o governo deveria participar mais de sua direção.
O senhor afirmou que estamos retomando as grandes discussões da vida do país. Como acredita que o povo deveria compreender esse momento?
Deveria começar a se preparar para grandes mobilizações nacionais. Quando jovem, participei ativamente da campanha "O petróleo é nosso", e aquilo teve um significado muito grande para a minha geração. Foi um marco no sentido de que era possível se construir um país melhor, para nós, ao contrário do que muitos diziam na época, sobre ser muito difícil o Brasil conseguir explorar essa riqueza. Porém, aquela mobilização deu certo e a Petrobras foi criada, para ser o que vemos hoje.
Portanto, a população precisa compreender a importância desse processo, seu significado para o futuro e lutar pelo que é nosso da mesma forma que foi feito na década de 50, mas em relação a todos os grandes temas que vivemos atualmente.
(Por Michelle Amaral da Silva*, BrasildeFato, 08/09/2008)
*Com texto de Valéria Nader e Gabriel Brito, do Correio da Cidadania