A terra preta de índio revela muito mais que fertilidade. Ela guarda pistas sobre a misteriosa pré-história da AmazôniaNas terras do município de Iranduba, no Amazonas, o agricultor João Rego Braga cultiva mamão, coco, banana e laranja. É uma fartura de dar inveja. As raízes de suas árvores frutíferas e a abundância da produção são garantidas pela formidável “terra preta de índio”, o tipo de solo mais fértil de toda a Amazônia. Em 2006, experimentos realizados por uma equipe brasileiro-americana comprovaram que ele apresenta quantidade e variedade bem mais amplas de microorganismos que os solos típicos dos trópicos – a terra preta é, literalmente, um terreno dotado de maior vitalidade.
Braga, que aprendeu com a linguagem dos cientistas que se trata de um solo antropogênico – ou seja, derivado da ação humana –, explica a seu modo: “Foi o ser humano quem fez esta terra. Os antigos matavam o peixe e a caça, e deixavam tudo na terra. Queimavam o carvão vegetal e também misturavam. Deu nisso”.
O caboclo da floresta tropical está certo, apesar de os pesquisadores ainda não terem certeza se o carvão era levado ao solo intencionalmente ou se era mesclado aos refugos domésticos por acidente. Nos dois casos, porém, sabe-se que a terra preta garantiu a sobrevivência de enormes grupos humanos. É possível até, sugere o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, “que dois grupos de índios tenham entrado em guerra para assegurar o controle desse solo há cerca de mil anos”.
Os estudos atestam que ele é composto também de fosfato, derivado, provavelmente, de dejetos humanos e da fauna e da flora aquáticas. “Isso pode significar que se trata de matéria orgânica advinda de atividades cotidianas das aldeias”, diz Neves.
Ao longo dos séculos, sucessivas ocupações humanas foram aproveitando o potencial nutritivo da terra preta e deixando, por sua vez, novas matérias orgânicas, que a enriquecia ainda mais, num ciclo que não cessou de ocorrer.
Com isso, hoje, é o caboclo da Amazônia quem se aproveita desse potencial. Dona Raimunda Braga, de 78 anos, mãe de João, a vida toda trabalhou com lavoura. Sentada na frente de sua casa com um vestido branco e gestos tímidos, ela louva a terra preta como uma dádiva da natureza: “Todo tipo de plantação vinga. A terra, mais úmida, custa a secar. Se a gente não usar adubo, as plantas ficam viçosas do mesmo jeito”.
Compreender a história da formação e as possibilidades de uso da terra preta pode trazer mais qualidade de vida aos moradores da região, assim como servir de modelo para o enriquecimento do solo de outras partes do mundo. Especula-se a viabilidade de reproduzir arti, cialmente a riqueza desse solo amazônico em regiões de terrenos frágeis, promovendo a agricultura em locais de escassez de alimentos.
Assim como a Revolução Verde melhorou de modo dramático a agricultura dos países em desenvolvimento, a produção de terra preta poderia desencadear o que a revista científica Nature chamou de Revolução Negra nas inúmeras regiões atingidas por solos pobres, desde o Sudeste Asiático até a África.
A terra preta é também a chave para se decifrar um passado desconhecido do Brasil. “Elas talvez sejam o melhor indicador de que os ambientes amazônicos foram modificados pelas populações que ocupavam e reocupavam a area antes da chegada dos europeus”, diz Neves. Até pouco tempo atrás, as teorias mais aceitas defendiam a idéia de que o ambiente da & oresta era demasiado hostil ao desenvolvimento de grupos humanos.
Assim, o amazônida pré-histórico viveria de coleta, caça e pesca, num nomadismo que ignorava a agricultura. Nesse contexto, os grupos indígenas seriam pequenos e culturalmente pobres. A presença dos grandes espaçosde terra preta derruba tais teorias. Extensos sítios arqueológicos datados em torno de 2,5 mil anos atestam que já existiam grupos sedentários que se fixavam num mesmo local por períodos longos – o suficiente, pelo menos, para alterar a composição do solo. E eram grupos de grandes proporções, com milhares de pessoas.
É possível que a agricultura tenha começado na Amazônia bem antes do que se pensava e que esses grupos se organizavam em núcleos que lembrariam pequenas cidades. Nesse passado longínquo houve uma espécie de explosão cultural, sugerida pelas modificações nos padrões de assentamento e pela rica produção de cerâmica.
Em cada escavação na terra preta, objetos, esqueletos humanos e ossadas de animais vão compondo um cenário cheio de interrogações sobre a pré-história brasileira. Ao revolver esse lixo remoto, arqueólogos encontram pistas sobre a vida cotidiana desses ancestrais: indícios de alimentação, produção artesanal, mitologia, rituais, padrões funerários, arte.
Para o agricultor João Rego Braga, contudo, que já chegou a colher 4 toneladas de mamão em uma única semana, menos importante que o passado impresso na terra preta é o seu futuro, no qual ela pode vir a sustentar milhares de pessoas. “Eu queria que toda a Amazônia fosse fértil como aqui. E o mundo também”, diz. Novamente, a ciência concorda com ele.
Nas terras do município de Iranduba, no Amazonas, o agricultor João Rego Braga cultiva mamão, coco, banana e laranja. É uma fartura de dar inveja. As raízes de suas árvores frutíferas e a abundância da produção são garantidas pela formidável “terra preta de índio”, o tipo de solo mais fértil de toda a Amazônia. Em 2006, experimentos realizados por uma equipe brasileiro-americana comprovaram que ele apresenta quantidade e variedade bem mais amplas de microorganismos que os solos típicos dos trópicos – a terra preta é, literalmente, um terreno dotado de maior vitalidade.
Braga, que aprendeu com a linguagem dos cientistas que se trata de um solo antropogênico – ou seja, derivado da ação humana –, explica a seu modo: “Foi o ser humano quem fez esta terra. Os antigos matavam o peixe e a caça, e deixavam tudo na terra. Queimavam o carvão vegetal e também misturavam. Deu nisso”.
O caboclo da floresta tropical está certo, apesar de os pesquisadores ainda não terem certeza se o carvão era levado ao solo intencionalmente ou se era mesclado aos refugos domésticos por acidente. Nos dois casos, porém, sabe-se que a terra preta garantiu a sobrevivência de enormes grupos humanos. É possível até, sugere o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, “que dois grupos de índios tenham entrado em guerra para assegurar o controle desse solo há cerca de mil anos”.
Os estudos atestam que ele é composto também de fosfato, derivado, provavelmente, de dejetos humanos e da fauna e da flora aquáticas. “Isso pode significar que se trata de matéria orgânica advinda de atividades cotidianas das aldeias”, diz Neves.
Ao longo dos séculos, sucessivas ocupações humanas foram aproveitando o potencial nutritivo da terra preta e deixando, por sua vez, novas matérias orgânicas, que a enriquecia ainda mais, num ciclo que não cessou de ocorrer.
Com isso, hoje, é o caboclo da Amazônia quem se aproveita desse potencial. Dona Raimunda Braga, de 78 anos, mãe de João, a vida toda trabalhou com lavoura. Sentada na frente de sua casa com um vestido branco e gestos tímidos, ela louva a terra preta como uma dádiva da natureza: “Todo tipo de plantação vinga. A terra, mais úmida, custa a secar. Se a gente não usar adubo, as plantas ficam viçosas do mesmo jeito”.
Compreender a história da formação e as possibilidades de uso da terra preta pode trazer mais qualidade de vida aos moradores da região, assim como servir de modelo para o enriquecimento do solo de outras partes do mundo. Especula-se a viabilidade de reproduzir arti, cialmente a riqueza desse solo amazônico em regiões de terrenos frágeis, promovendo a agricultura em locais de escassez de alimentos.
Assim como a Revolução Verde melhorou de modo dramático a agricultura dos países em desenvolvimento, a produção de terra preta poderia desencadear o que a revista científica Nature chamou de Revolução Negra nas inúmeras regiões atingidas por solos pobres, desde o Sudeste Asiático até a África.
A terra preta é também a chave para se decifrar um passado desconhecido do Brasil. “Elas talvez sejam o melhor indicador de que os ambientes amazônicos foram modificados pelas populações que ocupavam e reocupavam a area antes da chegada dos europeus”, diz Neves. Até pouco tempo atrás, as teorias mais aceitas defendiam a idéia de que o ambiente da & oresta era demasiado hostil ao desenvolvimento de grupos humanos.
Assim, o amazônida pré-histórico viveria de coleta, caça e pesca, num nomadismo que ignorava a agricultura. Nesse contexto, os grupos indígenas seriam pequenos e culturalmente pobres. A presença dos grandes espaçosde terra preta derruba tais teorias. Extensos sítios arqueológicos datados em torno de 2,5 mil anos atestam que já existiam grupos sedentários que se fixavam num mesmo local por períodos longos – o suficiente, pelo menos, para alterar a composição do solo. E eram grupos de grandes proporções, com milhares de pessoas.
É possível que a agricultura tenha começado na Amazônia bem antes do que se pensava e que esses grupos se organizavam em núcleos que lembrariam pequenas cidades. Nesse passado longínquo houve uma espécie de explosão cultural, sugerida pelas modificações nos padrões de assentamento e pela rica produção de cerâmica.
Em cada escavação na terra preta, objetos, esqueletos humanos e ossadas de animais vão compondo um cenário cheio de interrogações sobre a pré-história brasileira. Ao revolver esse lixo remoto, arqueólogos encontram pistas sobre a vida cotidiana desses ancestrais: indícios de alimentação, produção artesanal, mitologia, rituais, padrões funerários, arte.
Para o agricultor João Rego Braga, contudo, que já chegou a colher 4 toneladas de mamão em uma única semana, menos importante que o passado impresso na terra preta é o seu futuro, no qual ela pode vir a sustentar milhares de pessoas. “Eu queria que toda a Amazônia fosse fértil como aqui. E o mundo também”, diz. Novamente, a ciência concorda com ele.
(Por Monica Canejo, Revista National Geographic Brasil,
Planeta Sustentável, 04/09/2008)