O Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya), organização sem fins lucrativos, informou em nota pública a paralisação temporária de suas atividades. Segundo seu coordenador, Silvio Cavuscens, a burocracia e a morosidade da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) no repasse dos recursos para pagamento de pessoal, compra de medicamentos, equipamentos e insumos tornaram insustentáveis as atividades na Terra Indígena. Servidores há dois meses sem pagamento se recusam a entrar em área e, com isso, deixam mais de 12 mil Yanomami sem atendimento.
Apesar de atuar no Amazonas desde 1999, apenas em 2008 o Secoya aceitou assumir o atendimento à saúde dos Yanomami de Roraima a convite da Funasa, quando a conveniada anterior, ligada à Fundação Universidade de Brasília, não teve seu contrato renovado devido a denúncias de malversação de recursos e baixa qualidade do atendimento. A paralização das atividades da instituição contraria as promessas feitas aos Yanomami dia 27 de agosto último por Marcelo Lima Lopes, Coordenador Regional da Funasa em Roraima, durante a Assembléia Regional da Hutukara – Associação Yanomami, realizada na região da Serra das Surucucus. Nesse evento, Marcelo Lopes declarou que a crise na Funasa estava no fim, e que os recursos logo seriam liberados.
Leia abaixo a íntegra do comunicado público do Secoya.
SECOYA COMUNICA A PARALISAÇÃO DAS ACÕES DE SAÚDE PARA A POPULAÇÃO YANOMAMI DE RORAIMA
A Associação Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami – Secoya vem a público comunicar a paralisação de suas atividades de saúde junto à população Yanomami de Roraima em decorrência de mais de dois meses de atrasos de recursos além da falta de condições adequadas de trabalho para executar tais atividades.
A Secoya mantém parceria com a FUNASA desde 1999, através de convênios voltados para a assistência básica de saúde junto à população Yanomami dos Municípios de Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro, no Estado do Amazonas. Recentemente, a partir de março de 2008, assumiu, a convite da FUNASA, as ações de saúde junto ao povo Yanomami e Ye´kuana residentes nos estados do Amazonas e Roraima, totalizando 12.360 pessoas distribuídas em 183 aldeias.
Organizar os serviços de saúde numa região cujo acesso se dá via aérea para a maioria das aldeias localizadas em Roraima e via fluvial no Amazonas, transpondo multiplicidade de obstáculos e cachoeiras, já não é tarefa fácil, sem falar das enormes distâncias a serem percorridas pelos profissionais de saúde para alcançar as aldeias localizadas em áreas centrais ou de serra.
Esta rede de assistência pressupõe um espírito de serviço e um gostar desse povo de cultura tão distinta. Caso contrário, não seria possível suportar as dificuldades impostas, seja pelo tempo de serviço diretamente em campo (entre um a dois meses), seja pelo isolamento e as limitações de comunicação por meio de radiofonia. A Secoya aceitou este desafio em solidariedade ao povo Yanomami e esperando contar com as promessas de apoio feitas pela direção da FUNASA em Brasília (DESAI), condição sine qua non para garantir a retomada das ações de saúde no DSEI Yanomami e Ye´kuana, após anos de atendimento precário. Iniciou-se em março um processo de pactuação concluído em julho para cobrir o período de maio 2008 a maio 2009. Por conta da morosidade dos trâmites administrativos da FUNASA na aprovação de convênio e de análise de prestação de contas, nos encontramos sem recursos desde final de junho, sofrendo pressões dos profissionais que estão com seus vencimentos atrasados (salários de julho e agosto) e que não querem entrar em campo nessas condições.
É necessário recordar que muitos desses profissionais sofreram na pele os problemas decorrentes do Convênio entre a FUNASA e a Fundação Universidade de Brasília-FUB, ficando sem receber até hoje os vencimentos correspondentes a seis meses de trabalho realizados em 2007, sem qualquer respeito às leis trabalhistas vigentes no país. Contudo, a realidade hoje é bem mais preocupante e ultrapassa as questões acima levantadas.
A política de saúde indígena passou por várias mudanças desde 1999, que não conseguiram consolidar esse modelo de sub-sistema de saúde para que seja de fato operacional, coerente e adaptado a multiplicidade da realidade dos povos indígenas localizados nos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas-DSEI em nível nacional. A centralização da gestão da saúde indígena na FUNASA em Brasília (medicamentos, combustível, processos de pactuação, análise de prestação das conveniadas, etc.) vem gerando demora nos processos administrativos e constantes atrasos na aprovação e liberação de recursos para as conveniadas. Além disso, os princípios básicos definidos nas leis que constituíram os DSEI foram paulatinamente desvirtuados. Os Distritos perderam a sua autonomia e ficaram refém das Coordenações Regionais e os Conselhos Distritais passaram a ter uma atuação figurativa no processo de decisão em relação aos Planos Distritais e as propostas orçamentárias dos DSEI e dos Planos de Ação das conveniadas. O Controle Social, proposta participativa ousada, ficou então apagado.
Outra questão séria se refere às dificuldades de gestão da FUNASA, principalmente devido às influências políticas partidárias que vêm se sobrepondo a demanda de cunho técnico para o exercício difícil e criterioso da organização dos serviços de saúde em situações extremas, muitas vezes comparadas a situações emergenciais de guerra.
Este quadro torna-se desolador ao verificar o descaso com a situação da infra-estrutura e dos equipamentos disponibilizados para os trabalhos. Os equipamentos existentes hoje foram adquiridos, em sua maioria, entre 1999 e 2003, encontrando-se avariados ou de estado avançado de sucateamento. A Secoya não consegue desenvolver a contento suas ações em função dessa precariedade e da falta de novos equipamentos, tais como: barcos e motores de popa, geradores de energia, bombas hidráulicas, instrumentos médicos hospitalares e laboratoriais, radiofonias e placas solares, além dos equipamentos necessários para a manutenção das pistas de pouso e outros ainda, para o combate à malária, recrudescente na área Yanomami. A estrutura física de todos os pólos bases, subpólos e postos de saúde é precária, necessitando de reforma além de ser insuficiente. Além disso, é recorrente a falta de medicamentos e outros insumos em área.
Apesar das promessas de apoio do DESAI, incluindo as devidas condições de trabalho quando do início do processo de pactuação, estas não foram cumpridas, nem mesmo em relação aos equipamentos minimamente necessários para a sede da conveniada em Boa Vista, apesar de já estarmos há mais de 07 meses atuando em Roraima.
Como se isto não bastasse, a nova forma de liberação de combustível via Brasília, através de dezenas de cartões magnéticos para o abastecimento mensal de cada equipamento, é totalmente inoperante e foge da nossa realidade de trabalho, gerando uma série de transtornos e a falta desse produto em campo, inclusive para atender situações emergenciais.
Isto tudo compromete a assiduidade e a regularidade das ações de saúde pactuadas com a FUNASA. Basicamente as atividades têm uma característica assistencial e emergencial.
Em contexto como este, as ações preventivas ficam aquém do preconizado pelo Ministério da Saúde. Verifica-se um aumento das remoções para a cidade em busca de melhores condições de tratamento para os pacientes Yanomami, elevando ainda mais os custos da assistência. Mesmo assim, ocorreram situações que atingiram diretamente a vida de pacientes que não puderam ser salvos em tempo, por falta de combustível, por não ter disponibilidade de helicóptero, de motor de popa, ou de radiofonia em bom estado de funcionamento para realizar os procedimentos de emergências requeridos.
Tais condições acima referidas provocam um terrível problema na gestão dos recursos humanos contratados. É notória a redução da qualidade dos serviços prestados pelos profissionais em função de: processo de terceirização de recursos humanos sem a devida autonomia para executar as ações de serviço em área; a falta de profissionais capacitados em saúde indígena pela FUNASA; o aumento significativo da rotatividade, dado o grau de insatisfação provocado pelas péssimas condições de trabalho, de segurança e de capacitação oferecidas pela FUNASA.
Apesar da falta de recursos, procuramos manter a assistência, sensibilizando os nossos profissionais no sentido de garantir a cobertura da área e articulando com os fornecedores a aquisição de gêneros alimentícios para suprir as necessidades dos mesmos em campo, para pagamento posterior.
Hoje esta situação é insustentável, o ambiente é de total desânimo. Os profissionais já manifestaram publicamente a não entrada em campo nessas condições e nos encontramos diante da impossibilidade de novos débitos junto aos fornecedores.
O Governo Brasileiro, em sua política indigenista, o Ministério da Saúde e a FUNASA, na gestão da saúde indígena, precisam reagir e, com humildade, reconhecer que não é dessa forma que se faz saúde. Não é assim que se sustenta um sistema de saúde diferenciado e que em suas premissas foi muito bem idealizado. Tampouco é assim que se mantém relação de parceria com as conveniadas, na qual o sentido de colaboração, de coresponsabilidade, de comprometimento está ausente. E além de todo isso, precisam honrar o seu compromisso para com o povo Yanomami, com os povos indígenas, procurando resgatar o respeito que foi ultrajado, o descaso que matou e a insensibilidade que tomou conta da gestão administrativa.
O conjunto dos elementos aqui apresentado faz com que a Secoya, assim como outras conveniadas, sofra enorme desgaste institucional, sendo a sua imagem denegrida uma vez que é frequentemente responsabilizada pelos problemas ocorridos, principalmente por parte daqueles que não possuem informações mais detalhadas a respeito dos fatos, ou de representantes do órgão gestor, preocupados em salvar a imagem do governo.
Contudo, independentemente da nova política em elaboração, é preciso considerar que uma saúde de qualidade e diferenciada para os povos indígenas deve ser construída com eles, de modo participativo, fazendo valer o espírito do Distrito Sanitário Especial Indígena.
Nesse sentido, a Secoya nunca mediu esforços no sentido de fazer a sua parte e cumprir com seriedade os compromissos assumidos com este “serviço” junto ao povo Yanomami, desde que seja com a construção de um trabalho sério, articulado e respeitoso de uma verdadeira saúde indígena.
Enquanto a situação não se resolve, a FUNASA terá que arcar com o peso da história e a responsabilidade pela vida e a saúde do povo Yanomami.
Manaus, 03 de setembro 2008
(Por Silvio Cavuscens Coord. Geral da Secoya, ISA, 04/09/2008)