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sustentabilidade e capitalismo pobreza e fome no mundo
2008-09-03

Os chamados países subdesenvolvidos devem se preocupar com os problemas do meio? À primeira vista, esses problemas são muito mais graves e complexos nos países desenvolvidos, onde a industrialização e a gigantesca concentração urbana provocam diretamente um desequilíbrio inevitável e uma acentuada degradação do contorno natural, isto é, do meio. Desta forma, os problemas de poluição parecem se circunscrever e interessar quase exclusivamente aos países de alto nível de industrialização e, em muito escassa medida, aos países pobres, meros fornecedores de matérias-primas.

Esta é uma análise errônea, originada da imprecisão de alguns conceitos básicos, como as acepções habituais de “meio” e “desenvolvimento”. O meio não é apenas o conjunto de elementos materiais que, interferindo continuamente uns nos outros, configuram os mosaicos das paisagens geográficas. O meio é algo mais do que isso. As formas das estruturas econômicas e das estruturas mentais dos grupos humanos que habitam os diferentes espaços geográficos também são partes integrantes dele.

Considerado globalmente, o meio tanto compreende fatores de ordem física ou material quanto fatores de ordem econômica e cultural. Uma análise correta do meio deve abarcar o impacto total do homem e de sua cultura sobre os elementos restantes do contorno, e o impacto dos fatores ambientais sobre a vida do grupo humano considerado como uma totalidade. Desse ponto de vista o meio abrange aspectos biológicos, fisiológicos, econômicos e culturais, todos combinados na mesma trama de uma dinâmica ecológica em transformação permanente.Esse conceito é mais amplo e mais objetivo que o resultante de uma concepção do meio como sistema de relações mútuas entre os seres vivos e o contorno natural, considerados ambos como fenômenos isolados.

Igualmente falso é o conceito de desenvolvimento avaliado unicamente à base da expansão da riqueza material, do crescimento econômico. O desenvolvimento implica mudanças sociais sucessivas e profundas, que acompanham inevitavelmente as transformações tecnológicas do contorno natural. O conceito de desenvolvimento não é meramente quantitativo; mas compreende os aspectos qualitativos dos grupos humanos a que concerne. Crescer é uma coisa; desenvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo conseguiu ainda. Desta perspectiva, o mundo todo continua mais ou menos subdesenvolvido.

Atualmente está na moda falar dos efeitos nocivos que o crescimento econômico produz sobre o meio, sobre os componentes do contorno natural; entretanto, costuma-se referir apenas e precisamente aos efeitos que não são os mais ameaçadores para o futuro da humanidade.

Ouvem-se gritos de alarme condenando o crescimento da população, a poluição do ar, dos rios e dos mares e a degradação do patrimônio animal e vegetal das regiões mais desenvolvidas do mundo; mas tudo isso revela uma visão limitada do problema, já que o clamor se refere aos efeitos diretos da expansão econômica, enquanto deixa na sombra e reduz ao silêncio a insidiosa ação indireta do desenvolvimento sobre a totalidade dos grupos humanos. E é evidente que esta ação indireta é mais determinante que a ação direta.

O primeiro erro grave, a primeira conclusão falsa que deriva desta visão parcial do problema é a afirmativa muito generalizada de que nas regiões ricas é que apareceram, por causa do crescimento econômico, os primeiros efeitos da poluição e da degradação do meio ambiente. A realidade é diferente: os primeiros e mais graves efeitos do desenvolvimento manifestaram-se precisamente naquelas regiões que estão hoje economicamente subdesenvolvidas e que ontem eram politicamente colônias.

O subdesenvolvimento que existe nessas regiões é o primeiro produto do desenvolvimento desequilibrado do mundo. O subdesenvolvimento representa um tipo de poluição humana localizado em alguns setores abusivamente explorados pelas grandes potências industriais do mundo.

O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta.

Há os que afirmam, convictos, que a problemática do meio nos países subdesenvolvidos é diferente da dos países ricos e industrializados. Assim, diz-se que nas regiões subdesenvolvidas não existe preocupação com os aspectos qualitativos da vida, mas apenas com a possibilidade de sobreviver, isto é, com a luta contra a fome, contra as epidemias e contra a ignorância generalizada. Esta posição esquece que estes são apenas sintomas de uma grave doença social: o subdesenvolvimento como produto do desenvolvimento. Os países subdesenvolvidos que lutam pela sobrevivência devem se preocupar com os problemas do meio e do desenvolvimento em escala mundial, para se defenderem das agressões que seu próprio meio sofre há séculos por parte das metrópoles colonialistas, destruidoras da condição humana nas áreas subdesenvolvidas.

Se só ultimamente é que se vem falando com insistência da poluição e degradação provocadas pelo crescimento econômico, isso se deve a que a civilização ocidental, com seu repertório científico etnocêntrico, sempre se negou a aceitar esta evidência: que a fome e a miséria de algumas regiões distantes fazem parte do custo social do seu próprio progresso, um progresso que a humanidade inteira paga para que o desenvolvimento econômico avance no pequeno número de regiões dominantes política e economicamente no mundo.

A escamoteação desta verdade provocou a implantação em escala planetária de uma estratégia de luta contra o subdesenvolvimento que estava irremediavelmente fadada ao fracasso: a do Decênio para o Desenvolvimento, de 1960 a 1970. Fracasso que se tomará a produzir enquanto as estruturas econômicas do mundo continuarem sustentadas pelos falsos suportes do seu edifício social: a economia de guerra, a economia do lucro máximo e a política de esmagamento econômico do Terceiro Mundo.

Na sua luta por emancipação e sobrevivência, os países subdesenvolvidos terão de obter a qualquer preço uma sensível diminuição do impacto econômico negativo que a economia de mercado provoca no seu sistema de economia de dependência. Esses países vão combater a ação indireta e distante dos grandes pólos de concentração de capital, que alimentam por todos os meios, inclusive pela negativa à estabilidade do custo das matérias primas, o subdesenvolvimento da periferia econômica do mundo.

Para que não reste a menor dúvida de que o subdesenvolvimento é, na civilização de consumo, um produto do desenvolvimento, basta verificar que antes da explosão capitalista e industrial do nosso século não existia esta divisão entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, separados uns dos outros por um largo fosso econômico. Foi depois da segunda revolução industrial que se exteriorizaram as disparidades extremas dos ritmos de crescimento dos níveis econômicos de ambos os grupos de países.

Tomemos um exemplo concreto: a renda média por habitante, em dois países representativos dos dois grupos, Estados Unidos da América e Índia. Antes da I Guerra Mundial, a renda média por habitante era na Índia oito vezes inferior à dos Estados Unidos; antes da II Guerra Mundial, era 15 vezes inferior; atualmente a renda de um hindu é 50 vezes menor que a de um norte-americano.

É preciso considerar a degradação da economia dos países subdesenvolvidos como uma poluição do seu meio humano, causada pelos abusos econômicos das zonas de domínio da economia mundial; a fome, a miséria, os altos índices de freqüência de enfermidades evitáveis com um mínimo de higiene, a curta duração média da vida, tudo isto é produto da ação destruidora da exploração do mundo segundo o modelo da economia de domínio. A fome na Índia, no Peru, em São Domingos, no Nordeste do Brasil, embora apareça como manifestação local de zonas subdesenvolvidas, exprime na verdade formas paradoxais de doenças da civilização, na medida em que são o produto indireto do crescimento econômico desequilibrado, da mesma forma que são também indiretamente produzidas por ele as doenças cardiovasculares e degenerativas. No fundo ambos os grupos de doenças, as da civilização e as da penúria, são causadas por um só despotismo, o da frenética civilização do lucro. Umas surgem ali, diretamente sobre o próprio terreno desse despotismo; outras, indiretamente, longe dele.

A estratégia que considerava a realidade social do Terceiro Mundo separada do mundo como totalidade foi fatal para a melhoria das condições do meio. Toda a biosfera é um só ecossistema composto de múltiplos subsistemas. O ecossistema da biosfera possui enorme plasticidade estrutural, devido ao jogo dos mecanismos de compensação utilizados para equilibrar os impactos negativos da ação humana.

Mas essa plasticidade, que é um importante triunfo do homem, na medida em que permite transformar a biosfera e utilizar seus elementos para satisfazer as necessidades, não pode ultrapassar certos limites fixados pelas leis dos equilíbrios naturais, sob pena de provocar graves e, às vezes, fatais rupturas nos ecossistemas.

Os desequilíbrios extremos a que foi arrastado o Terceiro Mundo constituem, por causa do jogo das inter-relações ecológicas, uma ameaça para toda a biosfera e assim, ipso facto, para toda a espécie humana.

A fome do Terceiro Mundo pode um dia chegar a provocar uma peste generalizada, e a sublevação dos famintos pode levar o mundo inteiro à guerra, se considerarmos estes dois problemas: fome e guerra, como formas de um desequilíbrio dinâmico do meio sócio-econômico.

Não devemos considerar apenas a ação indireta do desenvolvimento sobre o Terceiro Mundo, ação que é mais econômica e cultural do que puramente física ou natural; devemos nos inquietar também com a ação direta: o esbanjamento inconsiderado dos recursos naturais não renováveis e as rupturas biológicas dos subsistemas ecológicos.

O Terceiro Mundo está sob a ameaça permanente de ver introduzidos tipos de desenvolvimento tecnológicos que, desdenhando a dimensão ecológica, podem provocar uma desagregação total de sua estrutura. Se levarmos em conta a relativa fragilidade de alguns ecossistemas equatoriais e tropicais, onde se agrupa a maior parte dos países do Terceiro Mundo, este perigo adquire maior gravidade ainda.

Ninguém ignora a grande fragilidade do solo nestas regiões devido, sobretudo, à erosão provocada pela exploração abusiva do manto vegetal. Ninguém ignora que os transbordamentos dos rios tropicais são controlados por diques vegetais de diversos tipos que orientam o curso. Por conseguinte, a destruição dessa vegetação provoca inundações e estancamentos de águas, que acarretam graves conseqüências: a perda dos cultivos agrícolas inundados até a disseminação endêmica de algumas doenças transmitidas por insetos que proliferam nas águas estancadas.

Será que basta a constatação de que o progresso tecnológico e o crescimento econômico atualmente destroem o meio ambiente do Terceiro Mundo para justificar o que alguns preconizam: a saber, a interrupção do crescimento nestas regiões? Não acredito. É absurdo preconizar a interrupção do desenvolvimento econômico nos países do Terceiro Mundo, quando os povos destas regiões vêem nele a sua última esperança de sair do estado de miséria que os oprime. Não creio que os chamados “oponentes do desenvolvimento” tenham razão ao propugnar uma interrupção, pois o que se impõe é uma mudança, ou melhor dito, uma reconversão do tipo de desenvolvimento.

A tecnologia não é boa nem má. É a sua utilização que lhe dá sentido ético. Se nos países do Terceiro Mundo a tecnologia age contra os povos subdesenvolvidos é porque foi utilizada unicamente para produzir o máximo de vantagens e lucros para os grupos da economia dominante. É a exploração neocolonialista que leva estes países ao estado de desespero em que hoje se encontram, agravado pela nova ameaça desta ordem de interromper o escasso progresso que conseguiram nos últimos decênios.

Fala-se muito do relatório que o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) preparou, por inspiração do Clube de Roma, à base de trabalhos de computadores. Este relatório determina limites de crescimento, avaliados levando-se em conta os efeitos nocivos da civilização tecnológica e industrial, ou seja, propõe a fixação de um ponto de estabilização da população e da economia mundiais.

Ora, embora aparentemente o relatório tenha razão - pois a todos nós inquieta a poluição e a degradação do meio - a realidade é que, considerado, globalmente, toma-se inaceitável porque suas conclusões estão falseadas por uma metodologia pouco científica. O relatório considera que o modelo de desenvolvimento que apresenta, com sua imagem do mundo dentro de um século, é o único válido, o único possível de ser armado com os dados hoje disponíveis sobre a realidade mundial. Este exclusivismo, muito característico da cultura etnocentrista dos países desenvolvidos, demonstra por si só o caráter pouco científico do relatório.

Todos sabemos que não se pode prever um só tipo de modelo do futuro. Os que estudam a ciência do porvir, a prospectiva, sabem que não é possível ater-se a um futuro único, determinado pelas diferentes condições que reinam no momento de realizar o estudo. O que cabe fazer é imaginar uma série de futuros prováveis em função do princípio da probabilidade que substituiu já há tempos o antigo princípio do determinismo, que foi a norma antes da formulação da teoria da relatividade.

Pode-se pois conceber vários modelos do mundo de amanhã e, com grande risco de erro, prever quais as probabilidades de cada um se transformar em realidade. De forma alguma deve-se limitar as previsões a um só modelo. Quando se fazem projeções lineares, como as do relatório sobre os limites do crescimento, cai-se inevitavelmente em ingênuas tentativas que não levam em conta a ruptura de estruturas, normal no processo histórico de nossa época.

Vivemos uma época de descontinuidade e não de continuidade. O erro mais grave do relatório do MIT é omitir, entre os fatores que determinam o crescimento, o problema das estruturas econômicas, sociais e políticas. Na introdução do relatório, os autores levam em conta apenas cinco fatores de desenvolvimento: a população, a produção agrícola, os recursos naturais, a produção industrial e a poluição. Nem uma palavra sobre as estruturas sócio-econômicas. No entanto, ninguém ignora que o nível de produção e o nível de poluição, isto é, o desenvolvimento e o meio, dependem essencialmente do tipo de estruturas em jogo.

Omitindo o homem e sua cultura, o projeto torna-se alienado porque não leva em conta as realidades do mundo atual e, por conseguinte, o modelo do mundo de amanhã. Se o Terceiro Mundo, na sua maior parte, recusa as conclusões deste relatório, é porque desconfia da prescrição sobre a interrupção do crescimento, interrupção apenas para as regiões pobres, pois é bem sabido que os países ricos não obedecerão a tal ordem. E o fosso que separa ambos os mundos se alargará ainda mais. Se isto é verdade, todo o paternalismo caritativo do Clube de Roma para com o Terceiro Mundo transforma-se num engodo. Este tipo de medida não ajuda em nada os países do Terceiro Mundo, mas, pelo contrário, prende-os definitivamente ao subdesenvolvimento e à miséria.

Conseqüentemente, estes países devem reagir e tentar encontrar um tipo de desenvolvimento independente do desenvolvimento neocolonial. Para isso precisarão procurar fórmulas que lhes permitam a aplicação de técnicas oriundas da prática e que serão as únicas válidas para desenvolvê-los de maneira racional. E indiscutível que o tipo de desenvolvimento atual é um fracasso, mas é indiscutível também que se pode chegar a desenvolver o mundo com estruturas sócio-econômicas e instrumentos de produção diferentes dos que se usam agora.

E imprescindível retransformar a economia de guerra em que vivemos numa economia de paz, e utilizar a enorme poupança que resultar do desarmamento parcial na obtenção de um tipo de desenvolvimento pacífico mais igualitário e não poluidor.

(Por Josué de Castro*, Eco Agência, 02/09/2008)
*Médico, escritor, geógrafo. Foi Presidente do Conselho Executivo da FAO de 1952 a 1956. Este trabalho foi apresentado no “Colóquio sobre o Meio” durante a Conferência da ONU sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo, em Junho de 1972.


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