Se o passado é a chave para o presente, como dizem os geólogos, então é bom tirar as galochas do armário. Um novo estudo sugere que o aumento do nível do mar no final deste século devido ao degelo da Groenlândia pode ser maior que um metro --muito mais do que o previsto pelo o IPCC, o painel do clima das Nações Unidas. A conclusão foi publicada ontem on-line no periódico "Nature Geoscience". Ela se baseia em uma análise detalhada do degelo de outra capa glacial: o manto de gelo de Laurêntida, que até 11 mil anos atrás cobria boa parte do hemisfério Norte.
Paisagem da Groenlândia, onde neve derrete cada vez mais cedo
Cientistas liderados por Anders Carlson, da Universidade de Wisconsin (EUA), investigaram a que velocidade o manto de Laurêntida derreteu após o fim da última Era Glacial. E descobriram que, entre 9.000 anos e 6.800 anos atrás, essa imensa geleira sofreu duas fases aceleradas de derretimento.
Em uma delas, a capa glacial fez o nível do mar subir 1,3 cm por ano. Na outra, 0,7 cm por ano. Para comparação, hoje em dia a elevação total do nível do mar é de 0,3 cm por ano. O que deixou os pesquisadores assustados foi que as temperaturas médias durante as duas fases de degelo rápido eram basicamente as mesmas que o IPCC prevê para a Groenlândia em 2100. Ou seja, este manto pode ser amanhã o que o de Laurêntida foi ontem.
"Desastres"
"Os achados de Carlson e colegas sugerem que taxas elevadas de subida do nível do mar são possíveis em condições de certa forma análogas às que podemos esperar no fim do século 21 sem uma urgente e significativa redução de emissões de gases-estufa", disse à Folha o oceanógrafo John Church, do Csiro, instituto federal de pesquisas da Austrália, que não participou do estudo.
"Taxas de elevação contínua do nível do mar dessa magnitude teriam impactos muito significativos na sociedade moderna e quase certamente provocariam uma série de grandes desastres." O aumento do nível do mar é causado por dois fatores: pelo maior volume ocupado pela água à medida que ela esquenta e pelo derretimento das geleiras continentais. O manto de gelo da Groenlândia poderia elevar o nível do mar em pelo menos sete metros caso derretesse por completo.
No entanto, como o funcionamento das geleiras dessa região é complexo --ora elas dão sinais de aceleração, ora de redução no ritmo de derretimento--, ainda não há consenso sobre qual será a real contribuição da Groenlândia com o nível do mar em 2100. O estudo de Carlson e colegas procura responder indiretamente a essa questão, ao estimar a que taxa um manto glacial gigante pode derreter.
O grupo coletou dados sobre a extensão do manto de Laurêntida em várias fases do passado e usou uma série de cálculos para traduzir mudanças nessa extensão em volume de gelo derretido --e em aumento do nível do mar. Eles observaram dois períodos de degelo rápido, de 9.500 a 8.500 anos e de 7.600 a 6.800 anos atrás, com elevações respectivas de 1,3 m e 70 cm no nível do mar. Para tirar a teima, os cientistas usaram um modelo climático em computador que simula a resposta das geleiras ao clima naquele período. O resultado foi parecido com as observações: a taxa de perda de volume era de 1,3 metro por século.
"Até que ponto essa resposta dinâmica do manto de gelo de Laurêntida à mudança de temperatura no passado pode ser considerada análoga às reduções presente e futura do manto de gelo da Groenlândia é uma questão em aberto", escreveram os climatologistas americanos Mark Siddall e Michael Kaplan em comentário ao artigo de Carlson na "Nature Geoscience". Afinal, lembram os cientistas, a Groenlândia preservou seu manto de gelo no mesmo período em que Laurêntida derreteu.
"Mas o trabalho sugere que futuras reduções na Groenlândia da ordem de um metro por século não estão descartadas."
(Por CLAUDIO ANGELO, Folha de S.Paulo, 02/09/2008)