Na opinião de Russel Mittermeier, presidente da Conservação Internacional, um assunto ficou de fora da enxurrada de notícias sobre a China que acompanhou as Olímpiadas de Pequim: o tráfico de animais silvestres para satisfazer a excêntrica atração dos chineses por carnes exóticas. Mittermeier fêz escala em Manaus na semana passada para participar do Congresso Internacional de Herptologia, antes de partir para a Holanda, onde discutiria as importânções de madeira tropical, outra contribuição chinesa para a destruição da vida selvagem no planeta.
A conversa com a reportagem de O Eco se deu num salão do hotel em que aconteceu o Congresso e no qual estavam expostos produtos de patrocinadores, trabalhos científicos e animais da fauna amazônica. O assunto deveria ser a situação de sapos, cobras e lagartos brasileiros. Mas vendo algumas espécies de cágados amazônicos, como um cabeçudo (Peltocephalus dumerilianus), um matá-matá (Chelys fimbriatus), tracajás (Podocnemis unifilis) e irapucas (Podocnemis erytrocephala), Mittermeier viajou e foi parar do outro lado do mundo. "A China é um grande problema para a vida silvestre", afirmou Mittermeier.
Segundo ele, os chineses sempre consumiram animais silvestres, assim como outros países do oriente. A diferença é que agora, com a abertura e o crescimento econômico, os chineses têm dinheiro suficiente para consumir animais trazidos de fora de suas fronteiras. Assim, eles exportam a extinção da fauna e a destruição de florestas que antes ocorria dentro do seu território. De acordo com o presidente da Conservation Internacional, a China tem leis para a proteção de animais e o que restou das florestas dentro do seu próprio território, mas não exerce o mesmo rigor quando os problemas ocorrem em outros países.
Os grandes quelônios são as espécies que mais sofrem com a pressão do consumo chinês. "São animais com reprodução lenta. Se você pegar uma fêmea grande, vai causar grande impacto na população", diz. Países como Laos, Vietnã, Camboja, Birmânia e Indonésia, locais onde existe uma grande população pobre disposta a sacrificar os animais para garantir comida e dinheiro para a família, são os mais afetados pelo tráfico de animais.
23 toneladas de pangolins
O tráfico de animais silvestres no Sudeste Asiático é monitorado pela rede Traffic, uma iniciativa do WWF e da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, em inglês). Notícias de apreensões no site da instituição, como ocorridas este ano no Vietnã e na Tailândia, demonstram a pressão exercida mercado chinês sobre a fauna do continente.
Entre o final de fevereiro e início de março, em apenas uma semana, autoridades vietnamitas apreenderam 23 toneladas de pangolins (Manis spp), mamífero encontrado no Sudeste Asiático listada no Apêndice II da Cites – Convenção Internacional de Espécies Ameaçadas da Fauna e Flora Selvagem. O pangolim se parece com um tamanduá ou tatu coberto de escamas. Desde 2000, o comércio internacional do bicho está proibido. Mesmo assim, sua carne ainda serve à medicina tradicional e ao apetite da população de países asiáticos.
A maior apreensão da espécie já ocorrida no Vietnã foi feita no dia 6 de março. Dezesseis toneladas do bicho, embarcados em contêineres em um navio como peixe fresco. A carga estava no porto de Hai Phong, em contêineres a caminho da China. Uma semana antes, na mesma cidade, foram apreendidas sete toneladas de carne e escamas do bicho. As duas remessas saíram da Indonésia, onde o Pangolim é protegido por lei nacional.
Um relatório da Rede Traffic lançado em abril aponta a Tailândia como um importante centro do tráfico internacional de tartarugas marinhas e de água doce. Entre as 27 espécies de quelônios encontradas no Mercado de Chatuchak, em Bangkok, por investigadores da rede, 25 não eram nativas do país. E segundo informações da rede, a grande maioria dos animais teria chegado ilegalmente à Tailândia. Os próprios comerciantes assumiram que muitos animais eram contrabandeados e chegaram a dar dicas sobre como contrabandear répteis.
Luta difícil
O animal mais comum no mercado negro de Bangkok era o Astrochelys radiata, espécie de cágado endêmico de Madagascar e listado no Apêndice I da Cites, ou seja, que tem todo o comércio internacional proibido. Das 786 tartarugas e cágados à venda, 285, estão no Apêndice I da Cites. Entre elas, foram encontrados 269 Astrochelys radiata. Contrabandistas de outros países, como Japão, Cingapura e Malásia, se abastecem no mercado de Bangkok para revender os animais.
Antes da investigação, a polícia Tailandesa já havia feito uma batida no mercado de Chatuchak e apreendido uma grande variedade de animais silvestres, entre eles 18 Astrochelys radiata e três cágados de Ploughshare (Astrochelys yniphora), considerado o cágado mais raro do mundo. De acordo com o presidente da Conservation Internacional, existem apenas cerca de duzentos indivíduos da espécie vivendo na natureza. "E mesmo raros, estão sendo caçados e colocados à venda em mercados de Bangkok e em sites chineses na internet", lamenta. Mittermeier também já se deparou com animais silvestres contrabandeados em cidades asiáticas, inclusive da fauna brasileira.
Em Hong Kong, ele encontrou à venda tracajás e até um matá-matá, espécies de quelônios da Amazônia. Além de consumir animais silvestres, a China colabora com a destruição de habitats de várias espécies com a compra de madeira de países tropicais principalmente da Àfrica. Mittermeier reconhece que a batalha é difícil. A luta é contra um comércio que está entre os mais lucrativos, perdendo apenas para as drogas e talvez para as armas. A fragilidade das instituições de proteção ao meio ambiente nos países da região e a pobreza da população, que vive tentada a ganhar um dinheiro fácil com a venda de animais silvestres, facilitam o tráfico.
O relatório da rede Traffic pede mudanças na lei para torná-la mais rigorosa em relação à posse de animais listados na Cites. Ele recomenda maior vigilância nas fronteiras internacionais para prevenir o comércio de espécies proibidas. O texto destaca também a necessidade de cooperação com outros países para derrubar o comércio ilegal e altamente organizado de quelônios selvagens.
Para Mittermeier é preciso uma mudança de cultura na região, para reduzir o tráfico de animais. Ele destaca a diferença entre China e Índia, como uma população quase tão gigantesca quanto a chinesa, mas onde o consumo de carne não é tão popular. "Na Índia, em qualquer área de floresta, você encontra elefantes, pássaros, macacos. Na China, não encontra nenhum bicho", compara.
(Por Vandré Fonseca, OEco, 28/08/2008)