Um pedido de vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu nesta quarta-feira (27) o julgamento da ação que contesta a demarcação contínua da reserva indígena Raposa/Serra do Sol. No entanto, o presidente do Supremo, Gilmar Mendes, disse que o julgamento será retomado ainda neste ano. O grupo ligado aos arrozeiros comemorou com fogos de artifício o adiamento da sessão.
Relator da ação, o ministro Carlos Ayres Britto deu voto favorável à demarcação contínua da reserva, e pediu que seja derrubada a liminar que impedia a operação da Polícia Federal de retirada de não-índios da região.
Em seu voto, Britto reconheceu a competência constitucional da União para não apenas demarcar, mas "proteger" as terras ocupadas por indígenas. "O formato é contínuo", disse o ministro, ressaltando, contudo, que é possível a conciliação entre índios e não-índios.
"Não se pense que a exclusividade de usufruto seja inconciliável com a eventual presença dos não-índios, a instalação de equipamentos tecnológicos, a montagem de bases fixas. A conciliação é possível desde que tudo se processe debaixo da liderança da União e do controle do Ministério Público."
O STF julga a legalidade do decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2005, que estabeleceu a demarcação contínua da reserva Raposa/Serra do Sol. A constitucionalidade do decreto é contestada por parlamentares e governo do Estado, e produtores de arroz instalados na região.
"Perfeita compatibilidade"
O ministro-relator do STF considerou que há compatibilidade entre as faixas de fronteira e as terras indígenas localizadas em Roraima, argumento usado pelo governo do Estado e produtores de arroz para sustentar a tese de que a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol ameaça a segurança nacional.
"Não é por aí que se pode falar da abertura de flancos. Os nossos aborígenes, amantes e profundos conhecedores da nossa geografia, sempre souberam se opor à tentativa de invasores estrangeiros ao nosso país", disse Britto, em defesa de uma "patriótica" parceria dos índios com a Polícia Federal e as Forças Armadas nas fronteiras brasileiras.
"Quem proíbe o Estado de ocupar o espaço que lhe cabe? Não podem os índios pagar a fatura de uma dívida que não contraíram", acrescentou.
Na leitura de seu relatório, o ministro do STF afirmou ainda que a competência para demarcar terras indígenas pode ser exercida pela União contra Estados e municípios e não apenas contra não-índios.
E censurou os Estados que vêem a demarcação de áreas indígenas como uma "desvantajosa mutilação de seu território". "Índio não atrapalha o desenvolvimento", defendeu Britto.
Repercussão
O grupo ligado aos arrozeiros comemorou com fogos de artifício a suspensão do julgamento, e vibrou aos gritos de "viva a pátria", "viva o Brasil" e "é campeão".
"Estamos comemorando o pedido de vista porque com isso a gente ganha tempo para argumentar e garantir que os outros ministros votem conosco. Agora sabemos os pontos em que ele [ministro Carlos Ayres Britto, relator da ação] se baseou e podemos argumentar em cima deles para convencer os outros ministros", afirmou o produtor de arroz e secretário de saúde de Pacaraima, Júlio Jordão.
A Polícia Federal montou uma pequena barreira para separar os dois grupos que ocupam a única rua da Vila Surumu. De um lado, índios favoráveis à permanência dos arrozeiros. Do outro, o grupo favorável à demarcação contínua da área.
O tuxaua Martinho Souza disse que não ficou decepcionado com a suspensão do julgamento porque isso não representa nenhuma decisão sobre o futuro da região. "Vamos continuar acompanhando e vamos esperar a decisão final. Estamos aqui há 37 anos. E 30 anos não são três dias. Não vamos diminuir a mobilização."
O coordenador regional do CIR (Conselho Indígena de Roraima), Walter de Oliveira, afirmou que não aceitará provocações do grupo ligado aos arrozeiros e orientará os cerca de 700 índios que vieram acompanhar o julgamento a agir pacificamente.
Questão ideológica
O governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (PSDB), disse que o ministro Carlos Ayres Britto, relator da ação, ultrapassou em seu voto o lado jurídico, pendendo para uma questão ideológica.
"Ele foi muito rígido nas suas colocações ultrapassando o lado jurídico, parecia uma questão quem sabe ideológica. Mas respeito. O julgamento apenas começou, são 11 magistrados e nós tivemos apenas um voto", afirmou o governador.
O governador disse, no entanto, que se a posição de Britto for seguida pela maioria dos demais ministros, os arrozeiros deixarão a região de forma pacífica.
O prefeito de Pacaraima (RR) e arrozeiro César Quartiero (DEM) afirmou que os produtores aguardam o resultado do julgamento, mas deixarão a reserva caso seja essa a determinação do tribunal. "Já disse 500 vezes isso, caso o Supremo mande, nós temos que sair, somos obrigados à cumprir a lei", afirmou.
O senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) disse que o voto do relator surpreendeu os contrários à demarcação contínua da reserva. Ele disse que o Estado perderá muito caso o voto de Britto seja seguido.
"O que nós vimos e que só uma etnia estava representada e a realidade não é essa. Ainda tenho certeza de que nós podemos fazer uma demarcação que possa representar a maioria das etnias", declarou.
(Agência Folha, Folha Online, 27/08/2008)