Fernando Siqueira, entrevistado pelo Correio da Cidadania, é diretor da Associação dos Engenheiros da Petrobras:Notícias vindas de esferas do governo, e já divulgadas pela mídia, indicam que está sendo analisada a criação de uma nova estatal para exploração do petróleo na província petrolífera do pré-sal, `alijando-se` a Petrobrás do processo. O que significa a entrada em cena de uma discussão com esse teor, após alguns meses em que o governo vem demonstrando `boa vontade` em rever a Lei do Petróleo de FHC - que eliminou o monopólio da Petrobrás -, pelo menos no que se refere aos megacampos, que foram inclusive retirados da última rodada de leilões de concessões no ano passado?Fernando Siqueira - A nosso ver, a proposta da criação dessa estatal visa desviar a discussão do foco principal. Ou seja, as mudanças fundamentais e necessárias no marco regulatório atual, que é péssimo para o país, pelos fatos a seguir apresentados:
1) A Lei 9478/97 (Lei do petróleo) é intrinsecamente ilegal, visto que o seu artigo 3º diz que as jazidas de petróleo pertencem à União Federal; o artigo 21 diz que todo o direito do produto da lavra dessas jazidas pertence à União, ambos em conformidade com a Constituição Federal do Brasil. Mas o artigo 26, fruto do lobby internacional no Congresso Nacional, concede a propriedade do petróleo a quem o produzir, em desacordo com os artigos citados e ainda com o artigo 177 da Constituição;
2) Essa Lei determina que a União tenha uma Participação Especial na produção do petróleo. O Decreto 2705/98, assinado pelo presidente FHC, estabelece que essa participação varie de 0 a 40%, enquanto, no mundo, os governos dos países exportadores recebem, em média, 84% de participação. Ou seja, a União, dona do petróleo, recebe menos da metade da média mundial como Participação Especial;
3) Contrariando a Constituição Federal e os seus próprios artigos 3º e 21º., a Lei do Petróleo, através do seu artigo 26, dá a propriedade a quem produzir o petróleo. Isto, além de incoerente, é anti-estratégico, pois estamos entrando no terceiro e definitivo choque do petróleo, devido ao pico da produção mundial, com a demanda superando a oferta e os preços tendendo irreversivelmente à subida (algumas quedas se devem à especulação). Não tem cabimento transferir essa riqueza do povo brasileiro para empresas que não investiram, não correram riscos e ganham áreas onde o petróleo já está descoberto.
O argumento desses lobistas (começou com uma proposta do sr. Haroldo Lima fazendo um `lobbynho` que acabou chegando no `Lobão`) é que a Petrobrás teve 40 % das ações vendidas a preço de banana pelo governo FHC à Bolsa de Valores de Nova York, enquanto a nova estatal seria 100% do Estado brasileiro. Isto é uma tremenda enganação, pois a função dessa estatal seria a de gerenciar os leilões, mas sem mexer no marco regulatório atual. Seria trocar seis por meia-dúzia: criar um cabide de empregos para substituir a ANP na condução dos leilões, dentro de condições nefastas para a nação. Mas os brasileiros ficariam satisfeitos pensando que o pré-sal estaria garantido. Pura balela.
Vejamos a questão sob o ângulo correto. A Petrobrás pesquisou durante 30 anos a província do pré-sal. Havia dificuldades geológicas porque a camada de sal mascarava os levantamentos sísmicos. Com o advento das novas tecnologias, a empresa pôde identificar com mais precisão o local adequado para perfuração. Furou o primeiro poço com o custo de US$ 260 milhões, com riscos elevados, e achou o petróleo que seus técnicos esperavam. Fez isto tudo sozinha.
Um dos argumentos para a criação de uma nova empresa estatal diz respeito ao excessivo poder que seria direcionado à Petrobrás caso essa empresa viesse a monopolizar a província petrolífera do pré-sal, transformando-se em um `Estado dentro do Estado`, a exemplo da PDVSA venezuelana. Qual a sua opinião a esse respeito?Fernando Siqueira - A modernidade hoje é: 65% das reservas mundiais estão em mãos das seguintes `irmãs`: Saudi Aramco, Petrochina, Inoc (Iran), Gazprom (Rússia – renacionalizada), Petronas (Malásia), PDVSA (Venezuela), Pemex (México) e Petrobrás – todas elas são estatais, sendo que a maioria é 100% estatal. Portanto, não é nada extraordinário a Petrobrás ser uma estatal responsável pela produção do pré-sal. Nem tem porque ela criar problemas para o governo, se não o fez em 55 anos de existência.
Por outro lado, as 7 irmãs privadas estão se fundindo para tentar sobreviver. O Financial Times fez uma matéria em abril desse ano mostrando que, dentro de 5 anos, elas irão desaparecer porque só possuem 3% das reservas mundiais.
Outro dos argumentos levantados diz respeito a que, tratando-se de uma empresa mista, com capital público e privado, seria temerário a Petrobrás ter o monopólio da exploração do pré-sal. O que dizer sobre isso? E se a nova estatal a ser eventualmente criada contratar somente estrangeiros para explorar os novos poços, não seria ainda mais temerário?Fernando Siqueira - Se o marco regulatório for corrigido e o petróleo, como reza a Constituição, for propriedade da União, que poderá usá-lo estrategicamente, sendo o percentual de participação de quem produzi-lo fixado dentro da média mundial (16%), não haverá problemas em contratar-se a produção com a Petrobrás. Suponhamos que a Petrobrás seja a encarregada da exploração do pré-sal: 16% (100 menos 84%) da produção caberiam a ela. Mesmo tendo 40% das ações no exterior, isto representaria só 6,4% (40% de 16%), mas a União ficaria com 90,4% da produção (84 + 6,4%), pois ela ainda detém 40% das ações da Petrobrás. Nesse caso, os acionistas estrangeiros da Petrobrás ficariam com 6,4% do petróleo produzido.
O senador Aloizio Mercadante chegou a sugerir, em artigo na Folha de S. Paulo, que se crie um `fundo soberano` para gerir os novos recursos, a exemplo do que foi feito na Noruega, a pretexto de se distribuírem melhor os royalties do petróleo a partir de nosso pacto federativo. Ainda que fosse criado para gerir, esse fundo não poderia tranquilamente entregar a exploração para a Petrobrás? Estamos mediante algum tipo de `balão de ensaio`?Fernando Siqueira - O artigo é meio dúbio e também desvia a discussão do foco principal, embora a questão dos royalties seja também preocupante, porque, no mundo todo, onde tem produção em águas profundas, os royalties foram abolidos sob os argumentos de alto risco e elevado investimento. No Brasil, se os leilões continuarem, não será diferente. As corporações internacionais derrubarão os royalties como derrubaram o monopólio. Portanto, é muito desejável a distribuição dos royalties por todos os municípios brasileiros, não só para democratizar essa riqueza, como para tentar barrar mais esta ação predatória. Até porque o pré-sal não afeta nenhum município em particular.
O Fundo soberano pode ser uma boa idéia se for, como na Noruega, usado para as gerações pós-petróleo. Ocorre que precisamos, antes de tudo, garantir essa riqueza da ordem de US$ 20 trilhões de dólares para o seu verdadeiro dono, o povo brasileiro.
A questão principal é a propriedade do petróleo e a participação na produção. Os royalties são na base de 5%. Na participação especial estamos falando de passar a participação da União de 40 para 84%, ou 90,4% se a produção for feita pela Petrobrás. Essa tem que ser a discussão principal: mudar o pernicioso marco regulatório.
Sabemos, através de notícias da própria AEPET, que a Halliburton atua dentro da ANP via administração de dados estratégicos sem licitação. Essa promiscuidade entre interesses públicos e privados é uma marca antiga dessa agência reguladora ou tem se tornado mais pronunciada?Fernando Siqueira - Na véspera do 8º leilão, a Halliburton eliminou os intermediários e colocou na direção da ANP um preposto seu, diretor da sua filial de Angola. Esse diretor impôs restrições absurdas à Petrobrás. Se ela comprasse um bloco da borda do pré-sal, não poderia comprar mais nada nessa área. Conseguimos suspender esse leilão na justiça. Mas os lobbies internacionais estão recrudescendo e pressionando o governo para reabrir.
Esse diretor da Halliburton comanda a diretoria que realiza os leilões e gerencia o banco de dados de exploração e produção da ANP que, por força do artigo 22 da Lei 9478/97, recebe todos os dados estratégicos da Petrobrás. A empresa é obrigada a passar para a ANP todas as suas informações de exploração e produção. Por `mera coincidência`, esses dados são gerenciados pela Halliburton há 10 anos, através de sua subsidiária Landmark, contratada sem concorrência, contrariando o Ministério Publico, que em 2004 recomendou fazer concorrência para essa atividade, também subordinada a esse diretor, que agora assumiu a responsabilidade de comandar a gerência que define os blocos a serem licitados.
Não estaria entrando em jogo, com essas novas e surpreendentes notícias relativas à Petrobrás e ao pré-sal, uma pressão pesadíssima de grupos poderosos, além de novamente reveladora dessa promiscuidade público-privada?Fernando Siqueira - A reativação da 4ª Frota, a visita recente do subsecretário de defesa dos EUA ao presidente Lula, as declarações, na Europa, da Exxon e da Shell contra a mudança do marco regulatório são alguns exemplos dessa pressão. Deu no `A Tarde` online, em 14/08: `Multinacionais do petróleo e a Agência Internacional de Energia (AIE) criticaram os projetos de mudança na lei do petróleo e alertam que o país precisa de investimentos estrangeiros para explorar o pré-sal`. A posição das empresas é clara: manutenção do status quo. Os executivos deixaram claro que suas companhias vão pressionar o governo para evitar leis que as prejudiquem. Tanto a americana Exxon/Móbil como a francesa Total/Fina/Elf estimam que o governo pode estar se antecipando de forma ´arriscada´ ao mudar as leis, mas manter leis perniciosas para o Brasil pode.
Lembro que os EUA consomem 10 bilhões de barris por ano (8 bilhões internamente e 2 bilhões nas bases militares pelo mundo) e só tem 29 bilhões de barris de reservas. O pré-sal faz do Brasil um novo Iraque na América Latina e os EUA a consideram o seu quintal.
Muito antes da Lei 9478/97, a Petrobrás estudou sozinha, durante 30 anos, essa província, inédita no mundo, e encontrou-a eliminando todos os riscos. Qual seria a razão de entregar esta fantástica riqueza de mão beijada às corporações estrangeiras que detiveram por 13 anos o direito de explorar essa área e não o fizeram?
Temos tecnologia, capacitação, recursos financeiros e todas as condições para essa exploração. Não somos contra a venda de petróleo para salvar os EUA da situação crítica em que se encontram. Mas isto deve ser feito de forma soberana e pelos preços internacionais do mercado.
É preciso que o povo brasileiro, através das sociedades civis e militares, assuma a defesa dessa riqueza que lhe pertence. Trabalhadores, estudantes, militares, todas as classes sociais e políticas precisam se mobiliar para defender esse patrimônio.
(Por Valéria Nader*, Correio da Cidadania /
Blog Vi o Mundo, 21/08/2008)
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.