A indústria, claro, contra-ataca. Uma nova pesquisa, ainda em execução, é alardeada como sua tábua de salvação, seu salvo-conduto. “Nós, da cadeia produtiva, provocamos a USP, que, por sua vez, chamou outras universidades brasileiras e estrangeiras”, afirma Élio Martins presidente da Eternit. “Teremos os primeiros resultados em 2009.”
A pesquisa tem duas partes. Uma é a exposição ocupacional. “Vamos continuar avaliando os 4.200 estudados na pesquisa anterior”, diz Ericson Bagatin. “Outra parte é a exposição ambiental. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Salvador e Recife, selecionamos 500 pessoas – 100 em cada capital -- que residem há mais de 20 anos em casas com telhado de amianto. O objetivo é saber se elas estão doentes por causa do asbesto e quantificar as fibras nos locais. A tendência é não haver fibras nesses ambientes.”
Na linha de frente, estão os mesmos professores que fizeram o estudo anterior e integram a junta médica do Grupo Eternit: Mário Terra Filho, coordenador principal; Ericson Bagatin, coordenador-executivo; e Luiz Eduardo Nery. O orçamento previsto para esse projeto é 4 milhões de reais.
“Quem sabe o valor correto da pesquisa é a Marina [Júlia de Aquino]; fala com ela”, sugere Élio Martins. Inicialmente, Marina diz: “O valor total é 3,6 milhões de reais. O CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] deu um terço, 1 milhão de reais”.
Em e-mail de 23 de junho, Mario Terra Filho informa valor inferior:
R$ 2,5 milhões. Voltamos à Marina. Curiosamente, entre um contato e
outro, o
discurso sobre o volume total uniformiza-se. Em e-mail de 23 de junho,
sua assessoria de imprensa informa:
Total = R$ 2.562.275,00
CNPq = R$ 1.000.000,00
SECTEC* = R$ 500.000,00
IBC = 1.062.275,00
* SECTEC é a Secretaria de Ciência e Tecnologia de Goiás
Parêntese. IBC, relembramos, é o Instituto Brasileiro do Crisotila.
É o porta-voz principal da indústria do amianto. A participação do
governo de Goiás, através da Secretaria de Estado de Ciência e
Tecnologia, se deve a interesses econômicos, já que 40% da arrecadação
bruta de impostos do Estado provêm da única mina de amianto em
exploração comercial no país. Tanto o governo de Goiás como
sindicalistas representantes dos trabalhadores do setor de mineração
amianto e da construção civil, através da Comissão Nacional dos
Trabalhadores do Amianto (CNTA), participam do IBC. Recentemente, a
Abrea acusou esses sindicalistas de serem financiados pelo patronato e
denunciou o fato à Organização Internacional do Trabalho (OIT). A
conduta deles configura prática anti-sindical. Fere os princípios de
liberdade e autonomia sindical. Fechado o parêntese.
A
repórter insiste nos 3,6 milhões de reais. “A Marina não estava com os
papéis em mãos e se enganou”, diz sua assessoria de imprensa. “Nesses
R$ 2.562.275,00, estão englobadas as duas partes da pesquisa.”
Supondo que o total seja mesmo R$ 2.562.275,00, quanto a indústria
está pagando? R$1.062.275,00, segundo o presidente do IBC? Ou
aproximadamente os 500 mil reais que Terra diz ter recebido?
Financiamento industrial
Basta uma
rápida pesquisa no Google para achar a apresentação dessa pesquisa,
toda colorida, em power point. Na capa, em destaque, as logomarcas de
três grifes universitárias brasileiras: USP, Unifesp e Unicamp. Mas o
que mais chamou a atenção foi a página abaixo, com a
logomarca do Hospital das Clínicas de São Paulo: HC.
Euclides Castilho, presidente da CAPPesq na época, é professor titular do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. É epidemiologista, pesquisador de primeira linha, reconhecido nacional e internacionalmente. Também um cidadão honrado e ético. A repórter procurou-o.
Professor, o senhor se lembra de um projeto aprovado em 2006 sobre exposição ambiental e ocupacional ao amianto?
Euclides Castilho - Por ano, passam na CAPPesq quase 1.500 projetos, que são avaliados por
uma comissão. Desse eu me lembro, por se tratar de um estudo
multicêntrico. Além do Incor, tinha a participação da Unifesp e da
Unicamp.
Poderia mostrá-lo para mim?
Euclides Castilho - A CAPPesq foi criada pela
Conep [Comissão Nacional de Ética em Pesquisa], que, por sua vez, é uma
comissão do Conselho Nacional de Saúde. Seu princípio maior é o
controle social, a defesa da sociedade. Portanto, é meu dever
esclarecer a sociedade.
O senhor lembra se havia conflito de interesse?
Euclides Castilho - Não me recordo, vou apurar.
Um dia depois voltamos a conversar...
Essa pesquisa tem financiamento?
Euclides Castilho - Do CNPq.
Além do CNPq, essa pesquisa tem financiamento de empresas, indústrias?
Euclides Castilho -
No formulário do projeto, é preciso detalhar todas as fontes de
recursos, e isso é perguntado explicitamente. Os autores não nomearam
nenhuma empresa.
Tem conflito de interesse?
Euclides Castilho - Pela
documentação apresentada, não. O pesquisador assinou o termo de
responsabilidade. Logo, em tese, está implícito que não há. Assinar o
termo de responsabilidade implica obedecer a resolução196/96, do
Conselho Nacional de Saúde. Nela está explícito que não pode ter
conflito de interesse. Além disso, insisto, o pesquisador não nomeou
nenhuma fonte que pudesse sugerir conflito de interesse.
Mas acontece que essa pesquisa tem financiamento da indústria via entidade que faz o lobby a favor da indústria do amianto.
Euclides Castilho - Bem... tal informação deveria constar do projeto; não consta. Se for verdade, é uma omissão grave.
HC e USP não estariam sendo usados pela indústria do amianto?
Euclides Castilho -
Já fui vice-diretor do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da
Saúde. Também integrei o Comitê de Vacinas do Programa Global de Aids
da Organização Mundial de Saúde (OMS). Eu recebia muitas cartas de
pesquisadores. A sonegação de informações era gritante. Às vezes tinha
a impressão de que eles só assinavam o projeto. Havia pesquisadores
patrocinados pela indústria farmacêutica, participando de protocolo de
pesquisa de vacinas, como se eles fossem os autores. Na verdade, eram
meros executores de tarefas desenhadas pela indústria. Curiosamente,
sempre queriam ter pelo menos dois, três pacientes do HC para usar a
logomarca da USP.
Tabagismo pago pela Souza Cruz
O financiamento
da indústria também não consta do currículo Lattes. Aliás, não é a
primeira vez que isso acontece. Na pesquisa, iniciada em 1996 e citada
no início desta reportagem, divulgou-se apenas que era financiada pela
Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo). “Só que
mais de 50% dos recursos foram bancados pela indústria do amianto, o
maior interessado em seus resultados”, denunciou Fernanda Giannasi em
2000. “O conflito de interesses era flagrante. Essa nova pesquisa,
mesmo antes de ser divulgada, já está sob suspeita, pois os mesmos
erros persistem.”
José Fernando Perez, diretor-científico da Fapesp à época, respondeu: ...a assessoria da Fapesp entende que esse apoio financeiro da empresa SAMA não invalida, em princípio, os resultados do projeto. No entanto, entende também que ele cria uma situação de potencial conflito de interesse, que requer aplicação rigorosa do “princípio de plena informação”.
“Eu estava em Boston, o Perez me ligou, perguntando se eu sabia que essa pesquisa era financiada pela indústria. Eu não sabia”, relembra o médico patologista Paulo Saldiva, que iria fazer os exames anátomo-patológicos. “Imediatamente me desliguei do estudo. Disse ao Ericson Bagatin que discordava da conduta e que havia conflito de interesse.”
Paulo Saldiva é professor titular de Patologia da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador da Harvard Medical School, nos Estados Unidos. “Mesmo que a lisura da pesquisa não seja comprometida, não fica bem ter financiamento da indústria num assunto tão polêmico, com interesses gigantescos, como o do amianto. É a mesma coisa que fazer pesquisa de tabagismo financiada pela Souza Cruz. É eticamente incompatível, eu me recuso a participar disso”, frisa Saldiva. “O amianto é cancerígeno, e eu defendo o banimento total dele no Brasil”.
Pelas mesmas razões de Saldiva, Eduardo Algranti, outro renomado pesquisador brasileiro, se retirou da pesquisa, informando isso à Fapesp; em carta a Bagatin, pediu que seu nome fosse retirado do relatório final. Algranti é doutor em Saúde Pública, pesquisador e pneumologista da Fundacentro, órgão ligado ao MTE.
Erro crasso
“Potenciais conflitos de interesse
são resolvidos pelo princípio do pleno conhecimento, isto é: desde que
se declare que você prestou assessoria a empresas nos artigos
científicos publicados com assunto referentes a estas. O leitor julga
se houve o conflito ou não”, disse por e-mail Mário Terra Filho.
Sem identificar os pesquisadores e o objeto do estudo, discutimos a questão com o médico Dirceu Greco, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep):
A abertura da existência de conflito para o leitor de uma revista
científica ou platéia de congresso basta para garantir a lisura da
pesquisa?
Dirceu Greco - É um passo 100% obrigatório, mas pode não ser
suficiente. O pesquisador pode até dizer que não tem conflito de
interesse. Só que às vezes ele tem tanto envolvimento que não consegue
separar o seu interesse pessoal do que está fazendo como pesquisador.
É correto omitir do comitê de ética as fontes financiadoras?
Dirceu Greco -
É um erro crasso; no mínimo, estranho, levanta suspeitas. Se o
pesquisador é pago por um segmento cujo interesse é manter seu produto
no mercado, ele corre um risco enorme. Há uma tendência imensa de a
relação financiador-financiado não ser completamente independente e
influenciar o resultado da pesquisa. Logo, a transparência plena é
condição indispensável para se avaliar se há ou não conflito de
interesse. Se o pesquisador omite, aí talvez tenha algum problema.
Qual? É difícil dizer.
Tem jantar de graça?
Dirceu Greco - Não. Na cabeça de muitos pesquisadores
passa o seguinte raciocínio. Poxa, o patrocinador me trata tão bem, me
financia, como é que vou colocá-lo numa situação que pode ser
prejudicial para o negócio que está me financiando? E aí, o que fazer?
O correto é que enfrentemos a situação, mesmo com o risco de perder
futuros patrocínios.
Omitir informações é ético?
Dirceu Greco - Omitir não é ético. Nunca! A
transparência é parte do processo da nossa relação com os nossos
pesquisados. Logo, toda informação pertinente ao projeto tem que ser
disponibilizada. Talvez o pesquisador diga: “isso não tem importância,
por isso não foi acrescentado”. Ao omitir dados, você tira de qualquer
pessoa a possibilidade de avaliar aquela informação. Você impede o
contraditório. A informação só pode se tornar clara se o pesquisador
for claro.
A propósito. Por que o financiamento do setor do amianto deixou de ser explicitado à comissão de ética da Faculdade de Medicina da USP? Foi esquecimento? Se os resultados da pesquisa forem contrários aos interesses da indústria, eles serão publicados? Existe um contrato particular entre as partes de não se publicar resultados negativos? Haverá nesta pesquisa, tal qual na primeira, um seguro pago pela SAMA em favor dos médicos pesquisadores por possíveis erros médicos? Que mecanismos de controle foram colocados neste estudo para que ele não traga respostas falsas? Que providências as comissões de ética adotarão de agora em diante?
E o ex-empregado ou trabalhador, submetido à junta médica, como fica, já que ele não lê trabalhos científicos? Que garantia tem de que a sua avaliação de saúde está sendo adequada se os membros da junta médica têm pesquisa financiada pela indústria do amianto, que, por sua, quer que os resultados dêem aval à continuidade do produto? O ex-empregado ou trabalhador sabe dessa dupla-função? Qual a repercussão disso sobre a saúde do trabalhador?
“O pessoal da Eternit, o doutor Mílton [do Nascimento] e os professores que são médicos da junta são uns assassinos, mesmo!”, responde, na lata, dona Maria Lúcia. “São gente que não tem mãe”. A filha Lucinha assina embaixo: “O único jeito de mais gente não sofrer o que estamos vivenciando é o banimento completo --- e já! -- do amianto no Brasil e no restante do mundo”.
(Por Conceição Lemes, Especial para Viomundo, julho de 2008)