Em novembro de 2003, o economista Carlos Lessa, então presidente do BNDES, realizou quase secretamente uma operação extremamente sensível do ponto de vista político. Sem avisar seu superiores hierárquicos, entre eles o presidente Lula, que soube da operação através dos jornais, Lessa determinou que o BNDES comprasse dos funcionários da Vale, por R$ 1,5 bilhões, 8,5% das ações da Valepar, que controla a Vale. Com a operação, que desagradou profundamente o Planalto e foi decisiva para sua queda meses depois, Lessa impediu que a trading japonesa Mitsui, que já possuía 18% da Valepar e também estava de olho nas ações, passasse a deter ela mesma o direito de veto nas decisões da Valepar.
Se concretizada, a venda para a Mitsui significaria transferir para fora do Brasil o centro decisório de uma empresa que, entre várias outras atividades econômicas estratégicas, controla a província mineral de Carajás (PA), de onde planeja se expandir para a Amazônia inteira, e que também deseja explorar o urânio nacional após o anunciado fim do monopólio da União sobre a exploração esse mineral.
A lembrança da operação conduzida por Lessa retorna agora, que outra vez entra em jogo um posicionamento estratégico da Vale e sua repercussão para a economia nacional. Na semana passada, a Vale contratou por 1,6 bilhões de dólares a construção, na China, de 12 dos maiores navios graneleiros em produção no mundo. A mega operação no exterior, disse a empresa, vai aumentar a sua capacidade de carga em 4,8 milhões de toneladas de minério de ferro, o que realmente é ótimo para os acionistas da ex-estatal, cuja produtividade vai crescerá ainda mais. Porém, é péssimo para o Pais, que vê recursos brasileiros serem utilizados para gerar empregos e aquecer a economia fora de seu território. A contratação no exterior se justificaria pela suposta incapacidade de os estaleiros brasileiros construírem navios tão grandes.
Entretanto, a decisão da Vale de exportar empregos junto com seus minérios não é autônoma. O governo brasileiro conservou, através do BNDES, golden shares (ações de ouro) após a privatização da ex-estatal, em 1997. As ações de ouro são uma salvaguarda do poder público. Mesmo alienando a empresa, o Estado reconhece que a escala e o tipo das suas operações exigem a manutenção de alguma capacidade de o poder público sustar em última instância ações da empresa que contrariem os interesses nacionais. Um instrumento tão poderoso quanto aquele que Lessa utilizou quando exerceu a preferência de compra das ações na Valepar.
É legal, e absolutamente legítimo, o governo utilizar as prerrogativas da propriedade das ações de ouro para vetar a decisão de transferir para a China os milhares de empregos no setor naval. Mas, não se tem qualquer notícia de movimento nesse sentido por parte do presidente Lula. Amigo do peito da Vale, Lula costuma jantar na casa do presidente da companhia, Roger Agnelli, e em dezembro de 2007 chegou a intermediar pedido do governo da Colômbia para que a empresa construísse naquele país uma hidrelétrica e uma fábrica de alumínio. É contra essa empresa que o governo rejeita utilizar a ação de ouro, indicando que seu "ouro", na empresa, é falso. De tolo.
Dada a sua condição de eixo de desenvolvimento, a Vale deveria se integrar ao planejamento estratégico do País. Ajudar a instalar aqui uma capacidade para construir super graneleiros seria um bom passo, mas o País de onde a Vale extrai as milhões de toneladas de minério que lhe garantem riqueza não tem sido contemplado com algumas importantes decisões de longo curso, que agregariam enorme valor aos produtos que exporta e, por tabela, ajudaria o Brasil.
Por exemplo, a revista IstoÉ Dinheiro, de 19 de novembro de 2003, relatou que o ex-vice-presidente do BNDES à época de Lessa, Darc Costa, solicitou a Agnelli, da Vale, que a empresa se engajasse numa estratégia para o Brasil passar de uma capacidade anual de produção de 30 milhões de toneladas de aço para 100 milhões de toneladas, até 2015, através da fusão das siderúrgicas Usiminas, Açominas, CSN, Cosipa e da CST. Nesta última, a Vale detinha participação importante à época. "A empresa, porém, repudiou a idéia. E Roger Agnelli passou a ser visto no BNDES como um executivo que, em vez de impulsionar o aço brasileiro, estaria entregando minério barato para as siderúrgicas asiáticas", publicou a revista.
A preferência da Vale pela China é uma cuspida no prato ao qual volta e meia a ex-estatal recorre para conseguir créditos bilionários a custo de mãe para filho preferido. Em abril, por exemplo, o BNDES aprovou o maior financiamento de sua história (7,3 bilhões de reais até 2012) justamente para a Vale, que na oportunidade foi alçada à qualidade de cliente preferencial do Banco, onde seus projetos são apreciados com celeridade. Menos de um anos antes, em julho de 2007, a empresa já haviar ecebido do Banco outro empréstimo de porte: 773 milhões de reais, para aumentar a capacidade de transporte da Estrada de Ferro Carajás, sua controlada.
Intervir nessa exportação de empregos não seria uma novidade para o governo Lula, que usa pesos e medidas diferentes para tratar de assuntos semelhantes. No início de seu primeiro mandato, ele interrompeu uma licitação da Petrobras para compra de plataformas no exterior exatamente para proteger o mercado de trabalho nacional, que, para os desempregados brasileiros, vale ouro.
(Por Carlos Tautz*, Envolverde, 18/08/2008)
* Carlos Tautz é jornalista e pesquisador do Ibase.