O anúncio de que o Supremo Tribunal Federal-STF deverá julgar, ainda este mês, a ação impetrada pelo Governo do Estado de Roraima contra a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol está mobilizando indígenas e seus aliados. A situação é preocupante, de acordo com a Coordenação do Conselho Indigenista Missionário - Cimi, Regional Norte I, que abrange os estados do Amazonas e Roraima. Na entrevista a seguir, a coordenadora, Edina Pitarelli, expõe o posicionamento da entidade em relação ao tema. Ela trabalhou em Roraima, de 2000 até o início deste ano.
Adital - Que conseqüências os arrozeiros trazem para as comunidades indígenas da RSS?
Edina Pitarelli - Eles são uma ameaça permanente às comunidades indígenas. Afrontam, intimidam, queimam casas, ferem os indígenas à bala e com bombas de fabricação caseira. Além disso, se apropriaram de uma área extremamente importante que são as beiras dos rios Surumu e Tacutu, onde praticam todo tipo de crimes ambientais. Os rios são fontes de vida para as comunidades. Deles tiram o peixe e nas suas beiras se localizam as únicas terras da Raposa Serra do Sol aptas para o plantio de alimentos. Com a presença dos arrozeiros não existe paz possível nas aldeias. Sua permanência significaria a reprodução da violência e a inviabilização da produção de alimentos em regiões importantes, considerando que a população indígena na área está crescendo 4% ao ano. Hoje, 50,02% da população da RSS têm menos de 14 anos de idade. Nesse sentido comprometeria a reprodução física e cultural dos povos indígenas de que fala o artigo 231 da Constituição Federal.
Adital - Um dos argumentos usados contra a demarcação integral da RSS é de que é muita terra para poucos índios.
Edina Pitarelli - Nunca é demais repetir que as organizações sociais dos povos indígenas são reconhecidas pelo Estado Brasileiro, que a União tem a obrigação de protegê-las. Esse direito foi uma das grandes conquistas constitucionais dos povos indígenas, até então considerados como categorias transitórias, condenados à extinção. Para que esse direito possa ser exercido é necessário que a declaração dos limites das terras indígenas se dê de acordo com o significado, a forma de utilização e a necessidade futura desses povos. Caso contrário, se estaria atentando contra a sua existência, contra suas identidades. No caso da RSS, é importante nos darmos conta que se trata do direito de 5 povos indígenas (Macuxi, Wapixana, Ingaricó, Taurepang e Patamona), 194 comunidades com uma população de 19 mil pessoa. Ainda que não se levasse em conta esses princípios, com a demarcação integral da RSS, que tem 1.700.000 ha e ocupa 7,7% de Roraima se garante terra a 21/% da população rural desse estado.
Adital - Onde então está o problema?
Edina Pitarelli - Raposa Serra do Sol deixa de estar disponível para o mercado capitalista, que tem como um dos seus pilares a propriedade privada. Já não pode ser comprada ou vendida. Deixou de ser mercadoria e objeto para a realização de lucro. Ela se contrapõe, por isso, à poderosas forças econômicas que tentam de todas as formas, desqualificar a luta dos povos indígenas e daqueles que os apóiam. Os setores do agronegócio e da mineração buscam de forma imediata, liberdade da ação na região. Para alcançar os seus objetivos traçaram cuidadosamente uma estratégia para confundir a opinião pública sobre os reais interesses em jogo.
Adital - O que sustenta as estratégias deles?
Edina Pitarelli - Pelo menos três argumentos são os mais utilizados: que a RSS, por se localizar na região de fronteira, significa um risco à soberania do país; que ela inviabiliza o desenvolvimento do estado de Roraima; e que com a sua demarcação os índios ficariam isolados. O fato de estar em área de fronteira em nada ameaça a soberania do país. Graças aos indígenas a fronteira brasileira foi preservada. Dizer, também, que inviabiliza o desenvolvimento é outra mentira. Os indígenas são uns dos maiores criadores de gado da região, com um rebanho de mais de 36 mil cabeças. Além disso, eles têm produção de suínos, aves e plantações de várias espécies.
Adital - Outro argumento bastante difundido pelos meios de comunicação de Roraima é de que somente o CIR quer a demarcação em área contínua. Como as outras organizações se manifestam?
Edina Pitarelli - Isso não é verdade. Desde que os indígenas passaram a lutar pela demarcação da terra, há mais de 30 anos, os seus opositores usaram de vários artifícios. Como não conseguiram parar a luta por meio da violência, passaram a divulgar mentiras e procuraram dividir a organização. Políticos, empresários, fazendeiros, militares e outros jogavam índios contra índios. Algumas organizações foram criadas com apoio destes grupos para contestar a luta pela área contínua. Mas, depois da demarcação, em 1998, e da homologação, em 2005, a maioria dos contras aderiu à proposta defendida pelo CIR.
Adital - Em Roraima, os meios de comunicação influenciam muito contra os direitos indígenas. Como o Cimi Norte I analisa essa situação?
Edina Pitarelli - Com muita preocupação. Os meios de comunicação deveriam estar a serviço de todos os segmentos, dando espaço para todos de forma isenta e imparcial. Não é isso o que acontece. Há vários anos, os grandes jornais, rádios e televisões têm sido usados para atacar os indígenas e seus aliados, alimentando, assim, o preconceito e o racismo. Houve uma ocasião em que um sujeito, em um programa de rádio, colocou-se à disposição para matar o bispo emérito de Roraima, Dom Aldo Mongiano. Muitas outras mentiras e calúnias têm sido divulgadas contra os índios e contra a Igreja Católica, que tem sido importante aliada na defesa dos direitos desses povos. Nos casos recentes, os meios de comunicação têm procurado mostrar que os índios agridem os fazendeiros, que são invasores de terra, quando, na verdade, a situação é inversa. No dia 05 de maio passado, dez indígenas foram feridos à bala e bombas caseiras e os meios de comunicação e políticos diziam que os índios tinham atacado os rizicultores. Só depois que uma grande tv divulgou as imagens do ataque é que a verdade veio à tona.
Adital - A decisão do STF pode afetar outras terras indígenas, caso seja contrária à homologação?
Edina Pitarelli - O Supremo vai analisar um processo de uma área que passou por todos os trâmites legais para que se consolidasse como terra indígena. Isso pode despertar interesse de outros grupos econômicos em Roraima e até em outros estados. É um precedente perigoso num momento em que os grupos anti-indígenas parecem ganhar força no cenário nacional. Mas nós não perdemos as esperanças. Acreditamos na imparcialidade da Justiça brasileira e, sobretudo, na mobilização dos indígenas da terra Raposa Serra do Sol que produziu frutos significativos em mais de 30 anos de lutas.
(Por J. Rosha, Adital, 19/08/2008)