A iminente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol mantém a tensão em todas as etnias aborígines do País. Raposa Serra do Sol está situada na Amazônia, no nordeste do Estado de Roraima, extremo norte do Brasil. É uma terra de água em abundância, de 1,7 milhão de hectares, cuja demarcação foi homologada pelo governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2005, depois de quase duas décadas de questionamentos judiciais, com base nos princípios da Constituição de 1988. O STF deve aprovar ou rejeitar essa demarcação.
Na área vivem mais de 19 mil indígenas dos povos macuxi, wapixana, taurepang, patamona e ingarikó. Desde 1992, multiplicaram-se as invasões de latifundiários do arroz. Em apenas 13 anos, as plantações cresceram sete vezes, até chegarem a 14 mil hectares. Em março, o Presidente Lula enviou a Policia Federal para expulsar um grupo desses agricultores que resistem em deixar a terra. Os produtores responderam com violência. Dez indígenas foram feridos. “Começaram a atirar contra nós, jogaram bombas e fomos retrocedendo. Fui ferido na perna, nas costas e na cabeça”, nos conta um jovem macuxi.
Santinha da Silva também estava lá com seus três filhos no dia da agressão. “Não vou dizer que não sinto medo. Tenho medo, mas vou enfrentá-los. Se eles querem me matar, que me tirem a vida, mas deixando a terra para meus filhos”. Duas semanas depois de iniciada a operação policial o STF não só decidiu suspendê-la como admitiu um recurso que, se prosperar, permitirá aos produtores de arroz continuar ocupando esta terra indígena, criando um perigoso precedente. “Estarão em risco não apenas Raposa Serra do Sol, mas todas as reservas indígenas do País”, afirma Rosane Lacerda, professora de direito na Universidade de Brasília.
Nenhum produtor pagou as multas por deterioração ambiental e tampouco tem alguém preso pelas agressões aos indígenas. “Já foram presas algumas dessas pessoas, mas por períodos muito curtos, pois dispõem de recursos e muita influência política que conseguem transformar os processos em intermináveis disputas jurídicas”, afirma Paulo Santille, coordenador da Identificação e Delimitação das Terras Indígenas, da Fundação Nacional do Índio (Funai). Para Lacerda, pode-se falar de “uma guerra declarada contra os povos indígenas por parte dos setores que têm interesses econômicos em suas terras”.
Durante cinco séculos os povos indígenas de Raposa Serra do Sol sofreram reiteradas invasões: conquistadores portugueses, pecuaristas, garimpeiros e latifundiarios. Todos os usaram como peões. Os pecuaristas chegaram a marcar os nativos como gado. Orlando Perez da Silva, tuxaua (chefe indígena) da aldeia de Uiramutá, confirma com seu relato de vida a trágica história. “Os não-índios chegaram e invadiram nossas terras. Começaram a nos contratar em suas fazendas. Quando um índio reclamava do salário, lhe davam uma surra e se livravam dele”, recorda. Orlando passou seis anos como escravo. “Vivíamos totalmente escravizados. Para comprar uma rede tínhamos de trabalhar um mês inteiro”, conta.
Uma das entidades que se dedica a coordenar a luta dos indígenas é a Comissão de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, presidida pelo sateré-maué Gecinaldo Barbosa, para quem o problema transcende as fronteiras do Brasil. “A Amazônia é do Brasil, mas o problema é do mundo inteiro, o problema é de quem defende a vida”, disse. A pressão do agronegócio sobre as terras dos índios aumentou a partir da “revolução dos biocombustíveis” e da necessidade de produzir para alimentar a cabana pecuária mundial, afirma.
Beto Ricardo, coordenador do não-governamental Instituto Sócioambiental do Brasil (ISA), considera que o governo Lula é “um governo desenvolvimentista” imerso em um clima de “certa euforia econômica” e “a pressão sobre os indígenas é múltipla. Não apenas por parte do agronegócio, mas também por obras públicas como estradas, hidrelétricas, diques”. Para Nilva Baraúna, superintendente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) em Roraima, Raposa Serra do Sol constitui “a última fronteira agrícola” ambicionada pelo agronegócio. Aqui “teremos uma modificação importante da paisagem, dos recursos hídricos, da fauna e da flora devido às plantações de arroz. Os agrotóxicos utilizados pelos latifundiários estão contaminando os rios e a fauna aquática”, afirma Baraúna.
Gercimar Moraes Malheiro, macuxi e coordenador em Boa Vista, capital de Roraima, do Projeto de Proteção das Populações e Terras Indígenas da Amazônia, confirma o dano ambiental: “Todo o veneno, todos os resíduos da pulverização do arroz, vão para os rios”. Apesar das agressões e dos relatórios do Ibama sobre o impacto ambiental, a imensa maioria da população não-indígena de Roraima apóia a permanência dos produtores de arroz, pois “trazem riqueza e emprego”. Muitas pessoas ouvidas em Boa Vista demonstravam o temor de uma disparada do preço do arroz ou de uma crise econômica se os agricultores forem expulsos.
Para a superintendente do Ibama, o bem-estar oferecido pelas plantações de arroz à população é mínimo, já que “a maioria do trabalho é mecanizada”, não cria postos de trabalho, não paga impostos e os benefícios se concentram em poucas mãos. Para o coordenador do ISA, “as terras indígenas não sobreviverão se não houver um reordenamento ecológico e econômico do país e da Amazônia”. Como metáfora do que ocorre, afirma que “o Brasil é o único país com nome de uma árvore extinta”, em referência ao pau Brasil (Caesalpinia echinata), de cuja madeira era extraída uma tinta vermelha muito apreciada e que está em risco de extinção, embora ainda subsistam florestas e árvores dispersas.
No País há 605 terras indígenas habitadas por 215 povos, que somam cerca de 600 mil pessoas. Na cosmogonia indígena não há fronteiras, burocracia, nem posse da terra a nenhuma pessoa. Lutam por defender seu modelo de desenvolvimento em um momento em que a natureza “está se rebelando contra o mundo”, como nos disseram. Os habitantes originários de Raposa Serra do Sol desenvolveram uma economia de autoabastecimento. Cultivam milho, feijão, banana, mandioca, possuem 35 mil cabeças de gado e combinam a “medicina dos brancos” com a tradicional, fundamentada nas plantas com poderes de cura. “Com os povos indígenas vamos defender a natureza porque temos essa concepção da vida, essa cosmogonia do mundo para o futuro da humanidade”, assegura Barbosa.
A organização não-governamental espanhola Povos Irmãos e a empresa de audiovisual Companhia de Informação e Projetos Originais (Cipó) lançou uma campanha sobre a vulnerabilidade dos povos indígenas. A iniciativa inclui o envio de mensagem de apoio aos indígenas e de cartas pedindo a expulsão dos produtores de arroz ao Supremo Tribunal Federal, através do site da ong, http://www.puebloshermanos.org.es. Em setembro, apresentarão um documentário rodado em Raposa Serra do Sol.
(Por Marta Caravantes, Envolverde, IPS*, 14/08/2008)