O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros é quase um cinqüentão, mas até hoje não viu a cor de um plano de manejo aprovado e implementado. O documento é uma espécie de manual de uso para áreas protegidas. Segundo o chefe da reserva de Cerrado, o biólogo Daniel Borges, o plano sairá do forno em breve, incluindo novas áreas para turismo, mais postos de fiscalização, trilhas renovadas e até um ponto para acampamento dentro da reserva. “Até o fim de agosto quero estar com ele pronto”, comenta. Em seguida, o texto deve ser aprovado e publicado pelo Instituto Chico Mendes - ICMBio.
O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros nasceu com 625 mil hectares e outro nome, Parque Nacional do Tocantins. Era um gigante da conservação do Cerrado, mas o Regime Militar encolheu a área protegida, já atendendo a anseios do agronegócio. Entre 1972 e 1990, suas dimensões variaram entre 172 mil hectares, 60 mil hectares e 65,5 mil hectares, tamanho atual. Em 2001, uma nova tentativa de ampliação, para 236 mil hectares, foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal, alegando falta de estudos e de consultas públicas.
O parque possui hoje duas trilhas transitáveis, a dos saltos do Rio Preto e a dos Cânions/Cachoeira das Carioquinhas. A maioria dos que caminham nelas têm entre 20 e 40 anos de idade, afinal, são cerca de dez quilômetros em terreno acidentado. A intenção do governo é facilitar o acesso aos atrativos naturais, permitindo a entrada eventual de veículos com idosos, obesos ou deficientes físicos. Também são planejadas novas placas de sinalização, bancos, corrimões e escadas nos trechos mais íngremes e a licitação de lanchonetes. Coisas raras nos parcamente visitados parques brasileiros.
“Manteremos vários trechos com características rústicas, mas aventureiros não são mais importantes que idosos ou deficientes físicos. Dizem que quero urbanizar o parque, mas quero humanizá-lo, trazendo mais conforto e segurança. No Brasil ainda somos muito amadores em turismo”, disse o chefe da área protegida.
Para quem prefere gastar a sola da botina, o plano pode tirar da gaveta uma trilha de quase 20 quilômetros com pernoite, mas sem cruzar o parque. “A travessia até o Povoado da Capela terminaria dentro de fazendas, beneficiando este ou aquele proprietário e dificultando a responsabilização em caso de acidentes. A idéia é pernoitar e retornar à portaria”, explica Borges.
O local para acampamento deve ser equipado com energia solar, banheiro seco e outras tecnologias de baixo impacto ambiental. Outra idéia é a abertura da Trilha do Cruzeiro, antiga via de ligação ao município de Cavalcante.
“Para muitas pessoas, o parque se resume às trilhas que tem hoje, mas elas representam apenas 0,8% de sua área. Mesmo assim, ficamos (servidores) 80% de nosso tempo tratando de visitação e agindo pouco em gestão e fiscalização”, desabafa o biólogo.
Dinheiro em vista
Se as reformas projetadas para Veadeiros saírem do papel, o número de visitantes pode crescer até 50%, passando de 20 mil para até 30 mil por ano. Um terço dos turistas atravessa os portões do parque em julho. O início da seca no Centro-Oeste garante dias ensolarados e águas cristalinas nas inúmeras cachoeiras da região.
Cobrando R$ 3,00 de cada visitante, o parque arrecada cerca de R$ 60 mil anuais. Ano passado, no entanto, recebeu R$ 48 mil do Instituto Chico Mendes (antes Ibama). Só as mais de 50 horas de helicóptero necessárias para debelar os incêndios que consumiram 50 mil hectares (quase 80% de sua área) do parque em 2007 custaram R$ 270 mil.
Segurança e outros serviços terceirizados são pagos diretamente pelo governo. Vinte brigadistas foram contratados para atuar durante a seca, mas a área conta com cinco servidores. “A visitação hoje é mais importante em termos de visibilidade do que financeiramente. Vivemos esmolando combustível para os veículos”, conta Borges.
Os recursos para colocar em campo as reformas do parque podem vir de parcerias com o Ministério do Turismo e com o setor privado, algo que já vem sendo alinhavado pelo Ministério do Meio Ambiente. O acordo inclui os parques nacionais do Jaú (AM), da Serra dos Órgãos (RJ), dos Aparados da Serra (RS), da Serra da Capivara (PI) e de Fernando de Noronha (PE). Até setembro, R$ 50 milhões estão prometidos para essas reservas, diz o governo. No entanto, ainda não se sabe o tamanho da fatia para cada uma delas.
“O problema não é ter plano (de manejo), é implementar. Projetos definirão as necessidades financeiras para as melhorias em Veadeiros. O parque não tem estrutura nenhuma, queremos melhorar esse ponto sem impactar o meio ambiente”, comenta Benita Rocktaeschel, coordenadora de Visitação do ICMBio.
Mas as pedras no caminho das iniciativas para Veadeiros envolvem o trabalho de centenas de condutores de visitantes e até entraves na legislação federal.
Condutores obrigatórios
Há quase duas décadas nenhum turista pode adentrar os limites do parque sem um condutor de visitantes. As seis associações da região têm mais de 300 deles, muitos saídos de antigos garimpos. A conclusão do plano de manejo da área protegida está deixando todos de orelha em pé.
Segundo Daniel Borges, chefe do parque, a qualidade do serviço decaiu ao longo do tempo e em feriados prolongados até faltam guias. O serviço custa R$ 60,00 para grupos pequenos. “Semestre passado, tive que sair de porta em porta atrás de condutores e liberar grupos com mais gente do que o permitido em vários feriados. A atividade virou um bico, muita gente não tem compromisso com o trabalho e não se interessa mais por capacitação”, reclama o biólogo.
Ele também revela que placas de sinalização (patrimônio público) foram depredadas por condutores, forçando sua contratação por desorientados turistas. “Não há sinalização dentro do parque porque eles depredaram. Ouvi em reuniões que novas placas serão destruídas. Dizem que o serviço é só deles. Quero acabar com a obrigatoriedade, não com os condutores. Os bons profissionais estão gostando da iniciativa”, conta Borges.
A coordenadora sócio-ambiental da Abeta – Associação Brasileira das Empresas de Turismo de Aventura, Lucila Egydio, também não apóia essa “reserva de mercado”. Segundo ela, obrigação não é sinônimo de qualidade. “O turista é obrigado a usar condutores, mas não tem condições de avaliar a qualidade desse serviço. Uma saída é regular melhor o turismo de aventura, baseado em normas e certificações federais”, comenta.
Mas para Cecílio Neto, presidente da ACV/CV – Associação dos Condutores de Visitantes da chapada dos Veadeiros, muito mais está em jogo. O futuro de muitas famílias, segundo ele, depende dos guias obrigatórios. “Tudo que tenho veio do ecoturismo. A ‘guiagem’ tirou muita gente do garimpo. Nossa maior preocupação é que se acabe o serviço e não haja alternativa”, comenta.
Neto é ex-garimpeiro e trabalha como condutor desde 1987. Conhece a realidade dos moradores da região e teme que muitos percam sua única fonte de sustento. A própria Vila de São Jorge, onde está o único acesso regular à área protegida, surgiu com famílias de garimpeiros que abandonaram a atividade na esperança de lucrar com a visitação ao parque. “Vários condutores são analfabetos ou têm 50, 60 anos, mas conhecem muito a região e o Cerrado. Quem irá contratá-los? E se o serviço for terceirizado e exigir segundo grau completo ou inglês?”, questiona.
O presidente da ACV/CV também afirma que os condutores têm seu papel na conservação do parque nacional. Segundo ele, turistas solitários podem se perder, jogar lixo e desrespeitar normas de conduta. Os guias seriam uma barreira à má educação. Em 1989, o parque estava abarrotado de lixo, urubus e acampamentos clandestinos. Acabou fechado temporariamente. “Ajudamos a retirar caminhões de lixo da área, que ainda está em recuperação. Também auxiliamos no combate a incêndios, no manejo de trilhas”, conta Neto.
Mesmo assim, disse, o trabalho não é reconhecido pelo governo. “Não temos plano de saúde, nada. Se perdermos esse trabalho, quem garantirá o futuro da minha família? Temos que correr atrás de nossos direitos. Não podemos deixar que a corda arrebente sempre do lado mais fraco”, ressaltou Neto. Sua associação tem 76 condutores e, conforme ele, todos estão com cursos de primeiros socorros em dia e realizam reciclagens a cada seis meses.
Novo acesso
Os 30 quilômetros que separam Alto Paraíso da Vila de São Jorge estão quase que totalmente asfaltados. Além da velocidade dos veículos e das chances de atropelamentos de animais, crescem a expectativa de mais e mais turistas afoitos para conhecer os contornos da chapada. Vale lembrar que o esgoto de São Jorge ainda escorre para um córrego que deságua dentro do parque nacional, enquanto a captação de água para consumo humano também acontece dentro da área protegida.
Enquanto isso, municípios vizinhos querem tirar sua casquinha da área protegida. A prefeitura de Cavalcante, 90 quilômetros adiante de Alto Paraíso, deseja há tempos um portão de acesso ao parque. O ICMBio já percorreu a região e acredita na possibilidade, mas não para breve. Um possível acesso fica a 40 quilômetros do município, o que exige reformas nas esburacadas estradas de terra, infra-estrutura e funcionários para o órgão ambiental.
(Por Aldem Bourscheit, OEco, 12/08/2008)