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trabalho escravo
2008-08-12
Um dos 18 libertados em julho pelo grupo móvel das fazendas de Eurélio Piazza, em Xinguara (PA), já havia sido vítima de escravidão em 2000. De volta à mesma condição, passou mais oito anos sem receber pelo trabalho

O último pagamento recebido por Eduardo Ferreira da Silva veio logo depois das Olimpíadas de Sydney, na Austrália, cerca de um ano antes do atentado que derrubou as torres gêmeas do World Trade Center, nos EUA. O senhor de 64 anos - que perdeu a visão de um dos olhos, não pode completar todos os movimentos de um dos braços, sofre de pressão alta e diabetes - e sua esposa trabalharam oito anos na Fazenda Diadema, em Xinguara (PA), praticamente apenas por comida, roupa e fumo.

E o derradeiro "salário" de cerca de R$ 6 mil que Eduardo viu em setembro de 2000 foi na verdade um pagamento decorrente da primeira fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na propriedade, quando 18 trabalhadores foram libertados de condições análogas à escravidão. Depois da ação do grupo móvel do governo federal, no entanto, ele comprou uma pequena casa na área urbana do município e algumas cabeças de gado e acabou sendo "convencido" por Eurélio Piazza, dono da Fazenda Diadema, a voltar para a labuta na mesma propriedade.

Em meados de julho deste ano, o grupo móvel esteve novamente na Diadema para libertar novamente 18 trabalhadores. E, mais uma vez, Eduardo, engambelado pelo patrão em dobro, estava entre eles. "Não recebo nada. Não peço", testemunhou, em resposta às perguntas dos fiscais. "Mas também nunca falei: ´Piazza, me dê tanto´. Não amolo ninguém", relata.

Entocado no barraco em que vivia com a esposa, que lavava as roupas e fazia a comida para os outros trabalhadores que trabalhavam no "roço de juquira" (limpeza do terreno para utilização como pasto), sonhava um dia poder desfrutar tranqüilamente da renda da extração do babaçu, da força de duas éguas e da pequena criação de bovinos e suínos que mantinha no local. "Mas ele [Piazza] fala que é dele. Tem que ser dele", contou Eduardo. Perguntado do motivo pelo qual não abandona a Fazenda Diadema, ele quase desconversa. "Não agüento barulho", lamentou, reclamando das doenças que o amolam. "Tô passando de besta mesmo".

Na falta de informações mais completa, a esposa complementa: depois que Eduardo recebeu o pagamento por causa da primeira libertação, em 2000, passou logo em seguida a ser cobrado pelo proprietário Eurélio Piazza, que já contou da "lista suja" do trabalho escravo justamente por causa dos flagrantes na mesma fazenda. "[Piazza] Disse que agora nós é que estamos devendo", conta a esposa de Eduardo. Segundo ela, o proprietário chegou a dizer que o casal precisaria trabalhar "até pagar aqueles R$ 6 mil".

De acordo com Klinger Moreira, coordenador do grupo móvel, Eduardo foi convencido pelo patrão a voltar para a mesma fazenda.  A reincidência - tanto do empregador quanto do explorado - é um fenômeno comum. "Nesse caso, porém, não mudou o explorado nem o explorador", comenta o auditor Klinger.

Além do casal que ficou oito anos praticamente sem receber, a fiscalização encontrou, na mesma ação, um aplicador de agrotóxico sem camisa, desprovido de qualquer equipamento de proteção individual (EPI). O trabalhador migrante que partiu de Alto Alegre do Pindaré (MA) contou ao grupo móvel que estava há dois meses "batendo veneno", sem receber nada. O agrotóxico era armazenado no mesmo lugar em que os trabalhadores dormiam. Os alojamentos eram inadequados.

Para completar o quadro, um adolescente suava como vaqueiro nas fazendas de Eurélio Piazza. O jovem morava na casa do "gato" - aliciador de mão-de-obra - que, antes de contratá-lo no período de férias escolares pela promessa de R$ 200 mensais, pediu autorização aos pais. O garoto retirava leite e tratava do gado. Depois de quase um mês, tirara R$ 20, além da proposta do "gato" para que continuasse na labuta mesmo depois do reinício das aulas.

A maioria dos outros 18 trabalhadores que foram libertados das fazendas do reincidente Eurélio Piazza vinha do Maranhão - de municípios de Pinheiro (MA) e Palmeirândia (MA). Relatos colhidos pelos fiscais dão conta de que o "gato" a serviço do fazendeiro foi em busca de mão-de-obra e pagou R$ 250 para "trazer" cinco pessoas até Xinguara (PA). Esse grupo se juntou a outro, somando os 15 que estavam diretamente nas frentes de trabalho. Acordam às 3 da madrugada para fazer a comida, saíam às 5 da manhã e ficavam no roço de juquira até às 16h. A comida, dentro de vasilhas sujas e feita a partir de carnes penduradas, ficava no sol. "Perguntei se não estragava e eles responderam que achavam que não. ´Fica até quentinho...´, responderam"

Em depoimentos aos fiscais, eles disseram não ter acertado salário nenhum. Ninguém tinha carteira assinada. Limpavam o terreno esperando por uma recompensa proporcional a cada alqueire preparado para a pecuária. Chegaram no dia 11 de abril de 2008 e planejavam permanecer até dezembro. Enquanto isso, alimentação, transporte e outros itens eram "descontados" pelo empregador. Aos fiscais, um dos desavisados trabalhadores calculou que, só para saldar os gastos com comida de abril a julho, eles precisariam "pagar" cerca de R$ 2 mil com muito trabalho ao dono da fazenda.

Mea culpa
Em entrevista à Repórter Brasil por telefone, Eurélio Piazza não refutou as autuações. Disse que, quando da última fiscalização, completava quatro meses distante do Pará tratando da saúde em Curitiba (PR), onde também tem posses. "Os fiscais do MTE fizeram o trabalho deles", declarou. Para ele, o quadro de irregularidades pode ser explicado pelo seu afastamento por problemas de saúde (reflexos do acidente que sofrera há cerca de doze anos). "Aconteceu [o flagrante] porque deixei a administração nas mãos dos outros".

"Estou arrumando gente adequada para cuidar da fazenda. Meu filho está se formando em engenharia ambiental em Curitiba", afirmou Eurélio à reportagem. O fazendeiro classificou Eduardo, a quem não pagou por cerca de oito anos, como um "grande amigo meu", que recebia pelo trabalho "com cabeças de gado". "Tem pessoas que não se afastam da gente", sublinhou. Eurélio Piazza admitiu que Eduardo e a esposa "faziam algumas coisas" para ele, mas "não tinha pagamento", porque ele deixava o casal criar algumas vacas e porcos no local. "Realmente, a coisa estava muito desorganizada", assume o proprietário da área de pecuária e de extração de madeira.

Por causa da libertação em 2000 e de uma outra fiscalização do grupo móvel que encontrou escravidão de 5 pessoas em 2002, Eurélio foi incluído na "lista suja" do trabalho escravo em 2003. Depois de cumprir o prazo de dois anos no cadastro de infratores mantido pelo governo federal, pagar todas as multas e atender as recomendações, ele acabou saindo da lista em 2005. "Disseram que eu já tinha cumprido tudo", disse. Diante do novo flagrante, o nome do fazendeiro deve ser inserido novamente na "lista suja".

Apenas para o "grande amigo" Eduardo, Eurélio teve que desembolsar cerca de R$ 83,2 mil - aproximadamente R$ 33,6 mil em verbas rescisórias e R$ 49,6 mil por dano moral individual. "Na Fazenda Diadema, não firmei TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] por dano moral coletivo. O dono já era reincidente e as mesmas propriedades haviam sido fiscalizadas duas vezes antes. Já existe uma ação civil pública contra o fazendeiro que está em fase de execução na Vara de Trabalho de Xinguara", conta a procuradora do trabalho Elisa Maria Brandt de Carvalho Malta, que acompanhou o grupo móvel. Somados os direitos trabalhistas e os danos morais individuais, Eurélio pagou cerca de R$ 225 mil. Os libertados voltaram às suas cidades de origem.

Outras fazendas
A operação do grupo móvel que esteve na Fazenda Diadema também inspecionou outras três propriedades. Na Fazenda Três Irmãos, localizada no município de São Félix do Xingu (PA) e pertencente ao fazendeiro Lucimar Borges Prado, foram encontradas 32 pessoas em condições degradantes. "Havia duas mulheres e um vaqueiro adolescente de 13 anos", testemunha a auditora fiscal do trabalho Inês Almeida, que atuou como subcoordenadora na operação. O proprietário teve que saldar um total de R$ 190 mil.

Na Fazenda Cocalândia, também em São Félix do Xingu (PA), o grupo móvel libertou 17 pessoas, entre elas duas mulheres. De acordo com a fiscalização, foram constatados indícios de que o "gato" da propriedade fornecia maconha para os jovens trabalhadores. Foram cobrados do proprietário Fidelcino Andrade R$ 171 mil por direitos trabalhistas e dano moral individual.

Na quarta propriedade de criação de pecuária bovina em que os fiscais estiveram não houve trabalho degradante. Foram constatadas irregularidades trabalhistas na Fazenda Bela Vista - quatro trabalhadores foram retirados e um continuou no local. Pela regularização das infrações, o fazendeiro Carlos Alberto Lopes foi instado a pagar R$ 33 mil. "Na Bela Vista, não foi fixado dano moral coletivo. Foi firmado um TAC que coíbe o descumprimento de normas trabalhistas, de caráter preventivo".

(Por Maurício Hashizume, Repórter Brasil, 11/08/2008)

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