A votação da Lei do Gás está prevista para agosto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, após mais um adiamento, no início de julho, da apreciação da matéria. A demora na aprovação de um marco legal específico para a indústria de gás natural no Brasil é lamentável, mas necessária, pois a relevância do assunto requer maior reflexão por parte de quem decide o futuro do País.
O tema é complexo porque envolve inúmeras variáveis econômicas, legais, políticas e técnicas, todas extremamente importantes e com efeitos concretos para a sociedade, uma vez que o gás natural é insumo indispensável para a indústria, o comércio e a geração de energia termoelétrica, além de ser usado como combustível para residências e veículos.
A história da utilização do gás natural no Brasil atravessou um longo período durante o qual a extração do gás chegou a ser considerada indesejável em razão da falta de infra-estrutura e de demanda para o aproveitamento econômico do produto. A partir da década de 80, entretanto, os volumes de gás encontrados, especialmente na Bacia de Campos, tornaram-se expressivos e se decidiu, então, pela utilização do hidrocarboneto em larga escala. Vários gasodutos foram construídos e inúmeras políticas de incentivo foram adotadas.
A realidade atual é a de uma indústria adaptada ao uso do gás natural em seus processos que convive com um ambiente regulatório inadequado.
O mais recente capítulo do debate sobre a Lei do Gás é representado pela oposição entre os senadores Aloizio Mercadante (PT-SP), defensor do texto aprovado na Câmara dos Deputados, que contempla parte dos pleitos dos grandes consumidores de energia, e Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), relator da proposta alterada, cujo cerne está na interpretação do artigo 25 da Constituição federal como regulador dos serviços públicos das distribuidoras estaduais de gás natural.
Na visão da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), a argumentação legal do relator é questionável, uma vez que o referido artigo não menciona a pretensa exclusividade por parte dos Estados no que tange à exploração dos serviços locais de distribuição de gás, concedendo-lhes apenas o direito de exercer essa exploração. Além disso, o viés monopolista presente na indústria do gás, tanto na esfera federal quanto na estadual, é considerado causa de uma série de malefícios, como a instabilidade, a falta de transparência, a restrição de suprimento, o aumento excessivo de preços e a retenção de investimentos.
Portanto, em oposição à proposta do relator, os principais aspectos da lei defendidos pela Abrace são a permissão de produção e de importação para uso próprio, o livre acesso aos gasodutos de transporte e a distinção entre as atividades de comercialização e de distribuição de gás. Todos esses pleitos são incentivadores da competitividade no setor e estão alinhados com uma visão de futuro e com o necessário desenvolvimento da indústria do gás, especialmente em razão da entrada de novos produtores no mercado brasileiro de óleo e gás.
Apesar das incertezas a respeito da 9ª rodada de licitações de áreas exploratórias, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) já realizou outras oito rodadas licitatórias, durante as quais diversas empresas arremataram blocos de exploração, em que poderão ser encontrados volumes de óleo e gás. Diante dessa perspectiva, é inconcebível a manutenção de um modelo comercial que obrigue uma companhia produtora de gás natural a vender o insumo à distribuidora estadual para comprá-lo novamente, caso queira usá-lo em suas unidades. Também é inaceitável que apenas as distribuidoras possam comprar o gás produzido, inviabilizando a negociação direta entre produtores e consumidores.
Há uma evidente falta de bom senso nessas práticas. Por isso, espera-se a inclusão da permissão de produção e importação de gás para consumo próprio na proposta de Lei do Gás que deverá ser votada na segunda semana deste mês.
Além disso, a Abrace acredita na continuidade da abertura da indústria petrolífera brasileira e, por essa razão, também considera essencial que o texto contemple a distinção entre as atividades de distribuição (movimentação do gás do ponto de recepção até o ponto de entrega) e de comercialização (atividade econômica) da molécula. Com a entrada de novos produtores, o correto seria um marco legal adequado para garantir o direito aos consumidores de adquirir gás de fontes diversas, para que possam negociar preços e condições contratuais livremente. A entrega do gás natural é outro serviço que, da mesma forma, poderá ser negociado com as distribuidoras estaduais.
Reforçando a idéia de competitividade e vislumbrando um ambiente de múltiplos fornecedores, o livre acesso a gasodutos de transportes pode ser considerado o principal incentivo a investimentos tanto em exploração quanto em infra-estrutura de transporte de gás natural. Ao permitir a ligação direta entre produtores e consumidores de grandes volumes, como os associados da Abrace, que hoje absorvem cerca de 40% do gás natural destinado ao setor industrial, o livre acesso garante a utilização plena e eficiente dos gasodutos existentes e, com isso, viabiliza economicamente investimentos nos elos da cadeia industrial do gás.
Esse é o futuro. E é para nos anteciparmos aos fatos que precisamos preparar nossos marcos legais, não para nos aferrarmos ao passado.
(Por Érico Sommer,
O Estado de S. Paulo, 11/08/2008)
Érico Sommer é presidente do Conselho Diretor da Associação Brasileira
de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres
(Abrace)