Camuflados pelo barro vermelho que paira no ar nesses meses de seca, centenas de barracos de lona, palha e madeira se espremem entre a estrada e a floresta, no noroeste de Mato Grosso. Ali vivem 135 famílias atraídas para a beira da MT 170 há dois anos e meio, depois que souberam se tratar de uma fazenda cheia de dívidas, prestes a ser desapropriada para fins de reforma agrária. Fincaram suas esperanças em uma das poucas áreas com remanescentes de matas altas nessa região, e acham que graças à floresta, terão solo fértil para plantar o que comer e criar galinhas, porcos e bois.
“Eu já estou velho, cansado de trabalhar para os outros e não ficar com nada pra mim”, diz Arlindo Brito, piauiense que veio para a Amazônia para se tornar garimpeiro em Rondônia e acabou em Mato Grosso, recebendo diárias que não superam 30 reais para fazer serviço de roçado em fazendas. É o sonho de ter um pedaço próprio de terra que move também dona Sebastiana Pereira Souza, goiana que há dois anos espera seu lote sair e, junto com o marido, ajuda com a venda de castanhas e óleo de copaíba na beira da estrada.
As aspirações desse grupo, em pleno ano de 2008, não são diferentes de outros que foram assentados na Amazônia há dez, 20 ou 30 anos. Por incentivos ao desmatamento e falta de assistência técnica rural, muitos colocaram abaixo lotes inteiros de mata fechada, e acabaram optando pela venda atravessada de cabeças de gado, sem necessariamente terem conquistado melhorias na qualidade de vida. Não raro, nesses casos costumam passar irregularmente seu lote para outro, quando não para um latifundiário vizinho.
Um documento atribuído ao Incra, guardado com o presidente da associação Cajati, que congrega os acampados, sugere, no entanto, que não será necessário derrubar uma só árvore para sacramentar este assentamento. O documento diz que uma vistoria realizada em outubro 2006 recomenda que sejam criados 200 lotes, com 9 hectares cada um, numa área de 1.800 hectares já convertidos em pastagens na fazenda. Os outros quase seis mil hectares de florestas seriam declarados como reserva legal coletiva. “Tudo isso vai virar a área de ‘floresta coleta’, ninguém vai poder derrubar nada. Às vezes, as pessoas não acreditam que isso acontece”, diz, orgulhoso, José Simão da Silva Filho.
Essa certeza de que a mata não vai ser derrubada não é compartilhada nem querida por diversas famílias acampadas. Numa manhã inteira de entrevistas, não houve quem não preferisse ser assentado em área hoje coberta por floresta, muito embora ninguém tenha ousado recusar qualquer área que lhe seja dada no futuro, por mais que não concordem inteiramente com seus critérios. “Eu acho que esse negócio da ‘floresta coleta’, de todo mundo ser dono da mesma área, não vai ser bom. Eu sou a favor de pegar os 9 hectares e, com mata, você poder trabalhar com ela”, opina Simão, referindo-se à reserva legal coletiva do assentamento. “O Incra só corta 21 alqueires (50 hectares). Toda vida foi assim. O Incra sempre corta na parte da mata. Cada um tem seu direito e derruba o quanto puder. Não existe eu governar um pedaço lá no capim e outro pedaço lá no final do capim do outro”, pondera Arlindo Brito.
Ele garante que, se for assentado na área de pastagem, não vai reclamar, é claro. Mas teria planos melhores se pudesse ocupar as áreas de mata. “O Incra não falou nada de deixar a mata. Dizem aí que a gente vai poder derrubar 4 ou 5 alqueires no início, para plantar. Aí depois vamos reflorestando”, crê Brito, que, no fundo, se incomoda com o estrago que grandes fazendeiros empreenderam em todo entorno. “Por que só fazendeiro rico é que pode derrubar? Se eu pudesse, só deixava os grandes derrubarem depois que reflorestassem tudo que devem. Podia funcionar assim, não é? Se o fazendeiro destruiu tudo, por que eu, que sou pobre, tenho que deixar metade pro meio ambiente?”, questiona-se.
Futuro incerto
Os detalhes sobre o estabelecimento das famílias e a categoria de assentamento a ser implantado no local ainda são incógnitas para os acampados. O Incra informou que a definição virá após a elaboração do Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA), que vai determinar inclusive quantas pessoas serão assentadas na Cajati. Por enquanto, é através de uma ficha de inscrição organizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) que Simão tenta restringir o aumento do número de barracos para que o assentamento, quando vier, privilegie aqueles que chegaram primeiro. Mas isso não é garantia de que todos ali serão contemplados. Segundo os moradores, o Incra nunca apareceu para cadastrar as famílias, mas por dois anos sustentou todas elas com cestas básicas. “Agora a gente está passando por mais necessidades, desde o dia 14 de fevereiro não chegam mais cestas”, lembra Josefa Telma de Jesus Silva, sergipana acampada desde o primeiro dia de ocupação.
O Incra informou que não existe relação entre o processo de assentamento das famílias com a entrega das cestas básicas, que pertencem ao programa Fome Zero. “O movimento ao qual os acampados são ligados faz as listas e encaminha para o Incra entregar”, esclareceu a assessoria de imprensa do órgão em Cuiabá. “As cestas foram suspensas este ano porque a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] ainda não comprou”, completou. Sem as cestas, a rotina para conseguir comida no acampamento é muito mais apertada, especialmente para quem não trabalha.
Para algumas famílias, já faz parte do cardápio se valer de carne de caça. Dizem que por ali já viram antas, tatus-canastra, catetos, queixadas e rastros de onças. Eles, afinal, estão numa área de refúgio para todos esses animais, em meio ao cenário predominante de pastagens. Apesar disso, nem de longe a floresta permanece intacta. A existência de uma serraria desativada no que restou da sede da fazenda indica um passado de derrubadas, especialmente das madeiras mais nobres.
Até a publicação desta reportagem, o Incra não respondeu o que levou o governo a declarar uma fazenda de 7.800 hectares, dos quais aproximadamente seis mil hectares ainda são cobertos por mata, como improdutiva e de interesse social para fins de reforma agrária. Essa é justamente a pendência que ainda segura a demarcação dos lotes, já que o proprietário do imóvel entrou na Justiça contra a decisão de desapropriação, tomada no dia 28 de fevereiro de 2008, dois anos depois que os primeiros acampados ocuparam a beira da estrada. No dia 7 de julho, o juiz federal Reynaldo Soares da Fonseca despachou a decisão da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Por unanimidade, ela entendeu que “havendo discussão sobre o caráter produtivo do imóvel, é prudente que a imissão da posse pelo Incra aguarde laudo pericial a ser realizado pela Justiça Federal”. Para azar dos acampados.
(Por Andreia Fanzeres, OEco, 10/08/2008)