"Quanto mais você se educa e se conscientiza,
mais claro fica que há mentiras em todas as partes",
trecho da abertura do filme Zeitgeist
A discussão sobre a mudança climática tem abusado da contradição ultimamente. Enquanto as previsões para os efeitos do aquecimento global pioram mês a mês, a paralisia social segue firme e forte. Depois da última explosão no preço do gás na Europa então, clima virou assunto de quem tem tempo para gastar. Só em julho o preço do combustível subiu 14% e 35% na Alemanha e na Inglaterra, respectivamente.
Essa preocupação com a segurança energética, acompanhada por toda a aura do cataclisma financeiro que ronda o mundo desenvolvido, jogou o aquecimento global para o final da fila das prioridades. Isso que as advertências estão cada vez mais apocalípticas.
No primeiro dia de Agosto um relatório escrito por especialistas da New Economics Foundation (NEF) alertou para a "contagem regressiva final". O relatório destacado pelo jornal britânico The Guardian (The final countdown), informa que o mundo tem 100 meses para cortar suas emissões de gases estufa.
Apesar do tom paranóico, o artigo aborda a questão com um viés tipicamente otimista. "Estamos sendo cautelosos, talvez até demais", admite o autor do texto, Andrew Simms, diretor do programa de mudanças climáticas da NEF que ao final conclui: "...temos todas as condições de superar o problema, mas precisamos agir já".
O alarme foi reforçado poucos dias depois pelo cientista-chefe do Departamento de Meio Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais (Defra) da Grã-Bretanha, Bob Watson. "Devemos estar preparados para um aumento de até 4 graus Celsius da temperatura média do planeta", disse Watson ao jornal The Guardian.
Alarmismo ou paranóia, o fato é que, analisados os dados científicos publicados sobre o assunto nos últimos meses, conclui-se que muito provavelmente tenhamos menos de 50 meses para agir. E não importa se o problema virá da água, ou do fogo. Há previsões sombrias para todos os casos.
Além do alardeado processo de savanização da Amazônia, todos os continentes devem apresentar regiões mais secas por conta dos efeitos da mudança do clima. Em 2007, por exemplo, jornais norte-americanos já noticiavam os resultados de um estudo desenvolvido por várias universidades e publicado na revista Science, prevendo que o Sudoeste do país enfrentaria uma "seca permanente" dentro de algumas décadas.
Enchentes e inundações também ficarão mais frequentes e imprevisíveis. Mas este será um problema, menor, por assim dizer. Em março deste ano a revista alemã Der Spiegel publicou uma reportagem a respeito dos efeitos da mudança climática na Antártida. Menos estudado que o Ártico, o pólo Sul detém 80% de toda água doce do planeta na forma de gelo. Os cientistas estimam que se esse gelo derreter o nível dos mares aumentará até 70 metros. Até o momento, tal hipótese é "improvável". Contudo, eles já apontam para uma mudança na estabilidade glacial do continente. "Estamos realmente muito surpresos com o que os dados recentes mostram", declarou o glaciologista norueguês, Kim Holmén, à revista. Ele se refere ao balanço glacial do pólo, que tem apresentado, em medições recentes, uma perda estimada de até 200 gigatoneladas de gelo por ano. Também preocupam os dados mostrando um movimento, entre perda e ganho de gelo, 42 vezes mais rápido do que o verificado nos últimos 4.700 anos.
Política da alienação
Sensacionalismos à parte, o que realmente preocupa é o teatro encenado por empresários e governantes. "Acho que só reagiremos depois que algo muito grave acontecer". A frase soaria catastrofista se tivesse sido dita por um ambientalista. Mas Harald Dovland não é um homem movido pela ideologia. Representante da Noruega nas negociações da Convenção-Quadro das Nações Unidas para a Mudança Climática (UNFCCC), ele sabe que pessimismo é um sentimento impróprio para a política. E não se trata disso. "Como fazer as pessoas enxergarem o problema, se o que elas recebem no seu dia-a-dia são informações contraditórias e confusas, sobre as quais elas acreditam não ter influência?", indaga.
A pergunta não é nova. É uma dúvida recorrente em eventos sobre mudança climática, desenvolvimento sustentável, objetivos do milênio. Frente à apatia que entremeia explanações complexas do problema e promessas sonhadoras de solução, poucos parecem ter a coragem de enfrentar a realidade. "Estamos aqui só para defender nossos salários", disse o irlandês John Doyle, representante da Comissão Européia (CE) na conferência internacional "What's Next", encontro preparatório para a reunião da UNFCCC em Bali no final do ano passado.
Sua indignação é baseada em um fato até o momento incontestável. Nenhum país conseguiu reduzir as emissões de gases estufa. E, num mundo pouco inclinado a mudar seus paradigmas de produção e consumo, a inércia impera. "Para os políticos, as metas de emissões são apenas números. Não são para serem cumpridos, mas para serem apresentados ao público, como num jogo", desabafa Doyle, que trabalha desde 1996 dentro da CE com projetos de "desenvolvimento sustentável na sociedade da informação".
Olhando para histórico da questão tem-se uma idéia da diferença entre a evolução do discurso da urgência e a inércia da reação de praxe. No início de Julho o presidente do Painel Intergovernamental para a Mudança Climática da ONU (IPCC), Rajendra Pachauri, declarou que só teríamos sete anos para reduzir as emissões a fim de evitar um hecatombe. Pouco mais de dois anos atrás o prazo era até 2050.
Se a situação é tão grave quanto apostam os maiores cientistas do mundo, por que nossos formadores de opinião e políticos ainda titubeiam? Não queremos todos salvar o planeta? E não se trata de acordos políticos, soluções futurísticas ou marketing verde. A questão é a inexistência de ações concretas e contundentes. Claro que a construção de cidades flutuantes que acompanhem a subida da maré é algo contundente. Mas bom mesmo se fosse factível. "A idéia de que vamos de alguma forma botar a humanidade em ilhas sustentáveis, onde podemos continuar vivendo com os mesmos padrões atuais, é profundamente irrealista", afirma Ben Stewart, assessor do Greenpeace para a questão climática. Quem conhece uma favela, ou a periferia das cidades brasileiras sabe que ele tem razão. E, com o conhecido alarmismo da ONG, Stewart avisa: "Se perdermos essa batalha haverá um grande número de pessoas morrendo".
O livro Climate Code Red vai na mesma linha, convocando a ação de emergência para salvar a civilização. Publicado em 2008, a obra mistura ativismo, política e ciência, reconhecendo que a luta contra o aquecimento global é, sobre tudo, um processo educativo.
Incompatibilidade midiática
O modelo atual da imprensa, e sua forma de sustentação também têm culpa da inação. A mesma revista que anuncia a possibilidade de uma elevação hecatômbica dos mares, publica semanalmente anúncios do "Fórum do Carvão", defendendo o uso do mineral na produção de energia. Com a incerteza das previsões científicas, afinal todas são baseadas em modelos computacionais que simulam precariamente o comportamento do planeta, os donos do poder trocam o princípio da precaução, pelo bem estar corrente. "Se um falso argumento, como o de que a proteção ambiental está aumentando o preço da energia, atrai tamanha atenção política, quais as chances de termos ações sérias contra o aquecimento global?", indaga o economista Paul Krugman, uma das vozes dissidentes dentro do mainstream da mídia, em artigo no The New York Times no último fim de semana.
De uma forma geral, qualquer sistema de comunicação humana parece inadequado quando o assunto envolve transversalidade do conhecimento e pluralidade de opiniões. Stephen Peak, pesquisador da Open University da Grã-Bretanha, acredita que as estruturas tradicionais de conhecimento sejam incompatíveis com a complexidade do problema da mudança climática. "O relatório do IPCC tem mais de três mil páginas, mas apesar desse enorme volume de informação, e dos enormes interesses políticos e econômicos envolvidos, uma só pessoa é escolhida para editar esse calhamaço. E você ainda tem que comprar o livro que resulta desse trabalho", exemplifica ele no artigo "Epistemologies of Climate Change: Science, Stories, and Scepticism".
Independente do que dizem os especialistas, a vida cotidiana segue normalmente. E não há mudanças consistentes no sistema produtivo à vista. Só paliativos e jogos de cena. Como nada mundialmente muito grave aconteceu ainda, dá para acreditar que todos estejam esperando mesmo pela catástrofe para agir.
(Por Mariano Senna, Ambiente JÁ, 07/08/2008)
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