Os direitos constitucionais dos povos indígenas e as distorções e preconceitos que estão permeando o debate sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol foram discutidos num simpósio sobre a questão, segunda-feira, 4 de agosto, no Ministério da Justiça.
“A pior discriminação contra um grupo ocorre quando há preconceito criado por ignorância. Isso está acontecendo no caso do debate sobre a terra Raposa Serra do Sol.”, pontuou Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto na abertura do evento.
No dia 27 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará uma ação que pede a anulação da portaria que definiu os limites da terra Raposa Serra Sol, demarcando-a em área contínua. Telles considerou lamentável que a discussão na imprensa não se dê em torno do conteúdo da ação ou da tradicionalidade ou não das terras. Têm mais destaque no debate os aspectos econômicos e políticos da região ou a necessidade dos indígenas à terra e até o questionamento à identidade étnica deles.
O professor emérito da Faculdade de Direito da USP, Dalmo Dallari, explicou os direitos que a Constituição Federal de 1988 assegura aos indígenas e que devem ser a base para resolver a questão na Justiça “Ninguém tem direitos acima da Constituição. O governador, os arrozeiros, todos devem respeitá-la e quem acredita na Justiça, respeita os direitos indígenas que estão expressos e assegurados na Constituição”, afirmou.
Dalmo lembrou que os direitos indígenas são originários, isto é, são direitos anteriores aos outros, pois estes povos são originários daqui. Os indígenas têm direito ao uso exclusivo das terras que tradicionalmente ocupam. “Não é apenas a parte onde vivem, mas também as que usam para pescar, plantar e também a necessária para sua sobrevivência cultural – o lugar onde fazem os rituais, onde enterram seus antepassados.”, detalhou o professor, explicando os aspectos analisados no laudo sobre a tradicionalidade da terra.
Estas terras são propriedade da União. “A demarcação é o processo que delimita essas terras, mas elas já são terras indígenas antes mesmo da demarcação. O Executivo deve defender o patrimônio público”, afirmou Dalmo. Em relação aos ocupantes não-indígenas na terra Raposa Serra do Sol, o jurista foi claro: “Estão invadindo patrimônio do povo brasileiro. A terra não pode ser apropriada por um grupo para ter lucro”. E sobre os argumentos de que a economia de Roraima seria prejudica com a demarcação, Dalmo enfatizou que “muito do lucro do que se exporta fica com o dono, sobre pouco para o povo brasileiro”. E completou: “Quem contesta a demarcação está preocupado com seu dinheiro, não respeita a Constituição e não quer saber de soberania”.
O Advogado Geral da União, José Antônio Dias Toffoli, também explicitou a regularidade de Raposa Serra do Sol, em resposta aos que questionam a demarcação em faixa de fronteira. “Muitas vezes os indígenas que vivem em faixas de fronteira protegeram o Brasil. A soberania é mais protegida com áreas indígenas do que se ela estiver em terras de particulares.”, lembrou Toffoli.
Segundo a Constituição, não é obrigatória a manifestação do Conselho Nacional de Segurança em relação à demarcação em faixa de fronteira. Além disso, em caso de ameaça à soberania, como uma guerra, por exemplo, a lei determina que os indígenas sejam removidos e depois levados de volta.
Toffoli também explicou que o uso exclusivo dos indígenas à terra envolve apenas o solo e não o sub-solo. As riquezas minerais precisam de lei especial para exploração e ainda não existe esta lei.
Rebaixamento de classe e a anulação da diferença
Alguns aspectos antropológicos estão muito presentes no debate público sobre Raposa Serra do Sol. Setores contra a homologação em área contínua dizem que os indígenas que vivem naquela terra são “aculturados”, integrados, por isso não necessitam da terra.
A antropóloga Nádia Farage, da Universidade Estadual de Campinas, apontou que no Brasil, ao longo da história, relações étnicas foram transformadas em relações de classe. “Chamar um indígena de ‘caboco’ é um rebaixamento de classe e a anulação da diferença étnica. Fazer desaparecer a identidade étnica é fazer desaparecer direitos territoriais.”, explicou.
Segundo a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, da Universidade de Chicago, “Tradição é o fio da continuidade. Identidade étnica ostensiva não é necessária. Ninguém é igual sempre. A cultura é dinâmica. A identidade é o que fica.”
A senadora Marina Silva (PT/AC) também participou do simpósio e também criticou o hábito da sociedade nacional de querer fixar o indígena em sua imagem do passado. “Romantizar os índios como se precisassem ser sempre puros, bons é tirar deles sua natureza humana.”, argumentou.
A senadora afirmou que o Brasil precisa de fato priorizar manter a sua sócio-biodiversidade: “É fácil acolher a diferença, no lúdico ou nos discursos, mas é difícil acolher na práxis social e política, quando precisa de algum esforço. Se não conseguimos resolver a equação entre 18 mil índios e 6 arrozeiros é por que nossa aritmética está carecendo de ética”.
Marina também destacou a importância histórica dessa decisão para o STF: “O Legislativo fez a Constituinte, onde estão os direitos. O Executivo fez o demarcou, com Fernando Henrique, e homologou, com Lula. Agora, é a vez do Judiciário – vamos voltar atrás ou seguir mantendo nossa diversidade, capacidade de preservar ambiente?”
Em sua apresentação, a ex-Ministra do Meio Ambiente, ressaltou que os povos indígenas tem um papel fundamental na preservação do meio ambiente. Com base nisso, o tuxaua Jacir Makuxi respondeu a afirmação de que em Raposa há vazios demográficos: “Quando não tem índio num lugar, é por que é espaço para pescar, caçar. A gente não pode ficar. Meu pai dizia: ‘não pode construir casa muito perto do lago, da cachoeira, por que o deus dos peixes te mata.”. E completou: “os portugueses destruíram a natureza, nós protegemos e ninguém agradeceu. Ao contrário querem acabar com a gente.”
Jacir afirmou que depois da desintrusão muitos indígenas que estão nas cidades enfrentando dificuldades voltarão para a terra. O tuxaua também falou da violência sofrida pelos povos Makuxi, Igarinkó, Wapichana, Ingarikó e Pantamona nos 35 anos de luta pela terra. “Perdemos 21 parentes nesse anos de luta. Ninguém que matou foi preso, mas nunca fomos atrás de matar os brancos.”
Ao final de sua fala, fez um apelo à platéia do simpósio: “Gostaria que vocês falassem para os parentes de vocês não maltratarem mais a gente”
(CIMI, 06/08/2008)