A hidrovia do rio Negro herdou o tráfico de drogas da Colômbia para outros países que antes era feito por rota aérea sobre a Amazônia brasileira. O SIVAM-SIPAM, o controvertido projeto de monitoramento da Amazônia da era FHC, e o Cindacta-4, sistema de controle de tráfego aéreo que, pela primeira vez, cobre todas as rotas sobre a floresta, fecharam essa porta nos céus. E atravessar o espaço aéreo amazônico com cargas ilegais ficou bem mais perigoso. Além dos radares, e das pistas clandestinas que não resistem muito tempo à umidade e às chuvas da região, os traficantes estavam enfrentando um recrudescimento na repressão da Polícia Federal, que com o passar dos anos aprendeu a identificar melhor os pontos de aterrissagem do tráfico no meio da selva. Nesse contexto, a bandidagem viu nos rios amazônicos uma solução.
Essa migração do tráfico dos ares para os rios é confirmada pelo general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia e pelo Diretor-Geral da Polícia Federal, Luiz Fernando Corrêa. A região tem 22 mil kms de rios navegáveis, dos quais 11 mil kms são de fronteira, rasgando a selva. Uma grande hidrovia, como a do rio Negro, acaba virando uma avenida na qual essas rotas desembocam. São 1200 kms de hidrovia que, na parte brasileira, começa acima de São Gabriel da Cachoeira, na Cabeça de Cachorro, fronteira com a Colômbia, chegando até Manaus. Um bom pedaço dessa malha de rios navegáveis está conectada por “furos”, canais que ligam um rio ao outro ou duas partes de um mesmo rio, separadas por grandes ilhas.
Segundo relatam funcionários das agências ambientais da região, embarcações descem o rio Negro à noite, carregadas de madeira, quelônios, peixes amazônicos ornamentais e, no meio dessa carga ambiental ilegal, começa a aparecer a droga. Autoridades policiais dizem que os rios servem de via para pasta de coca, vinda da Colômbia, que pode estar sendo refinada nas imediações de Manaus. A cocaína segue, então, até Belém e daí para os mercados internacionais.
Nesse momento, uma grande operação militar de treinamento, a Operação Poraquê, põe a nata das forças militares de terra, ar e mar na Amazônia. Essa é a oitava operação desse tipo na região, e a primeira numa área que combina a selva tropical com a savana, em Roraima, na região de Caracaraí, permitindo que o treinamento envolva tanto ações de selva, quanto o uso de blindados.
Corte, grilagem e drogas
A Operação Poraquê vai cobrir também a calha do rio Negro. Na manhã dessa terça-feira, a Marinha levantou âncoras e navegou o rio, para chegar até Barcelos, um dos locais onde se estuda instalar uma base de ação conjunta, do Ibama, ICMBio, Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas -IPAAM e da PM prevista no Plano de Proteção do Baixo Rio Negro.
É uma localização controvertida. Alguns agentes locais prefeririam que a base ficasse situada na região do estreito, próxima a Manaus, e fosse acompanhada de um reforço operacional em Novo Airão. Dessa forma, se teria controle de todo o fluxo que vem do alto rio Negro, rumo ao baixo rio Negro, cujos pontos de receptação estão em Novo Airão, que faz ligação rodoviária com Manaus, e Manacaparu, que dá saída para o rio Solimões.
O problema do tráfico se agravou dramaticamente nos últimos anos na Amazônia e tem várias causas. De um lado, o crescimento urbano exponencial de capitais como Manaus e Belém, criou mercados locais para a droga. De outro, a crescente perda de controle, por parte da autoridade pública, sobre as atividades ilegais em toda a região. O avanço impune da grilagem, quase sempre apoiada na pistolagem, do desmatamento e do contrabando de espécies, acabou criando um ambiente propício ao crime. O desmando generalizado atrai o grande crime, o crime organizado. Com a chegada do crime organizado, se concretiza o risco de fusão das ações ilegais.
Os agentes ambientais da região relatam numerosos casos de apreensão de madeira, no meio da qual se encontrou pasta de coca. Há, também, evidência de que jovens da periferia das cidades do baixo rio Negro, especialmente de Manaus, são recrutados para cortar madeira nas unidades de conservação e pagos com pasta de coca ou cocaína. Eles são chamados de “galerosos”, por fazerem partes das gangues urbanas mais violentas. Os ribeirinhos também são aliciados e fazem papel de “aviõezinhos”, transportando droga para Manaus.
Tráfico de bicho e drogas
Segundo um relato, quando é carga que requer mais segurança e velocidade, como alevinos de aruanã (Osteoglossum bicirrhosum), que têm sido apreendidos, em grande quantidade, seguem sempre pelo rio. O rio dá mais segurança. É o que pensa, também, o general Augusto Heleno, Comandante Militar da Amazônia. Segundo, ele está errado imaginar que o tráfico não vai prosperar porque o transporte por rio é mais lento. É lento apenas até estabelecer a primeira rota. Depois, é uma questão logística elementar, programar o fluxo para ter uma entrega por dia. Esse fluxo tem a vantagem de ser mais seguro.
Essa enorme malha fluvial é muito difícil de monitorar. A fronteira é enorme, parte selva, parte savana, parte água, muito difícil de controlar. Mas, na opinião do general, dá para ser mais eficiente, unindo forças, para fazer operações conjuntas das Forças Armadas, Polícia Federal, Ibama/ICMBio, com transportes mais ágeis. As autoridades militares e policiais federais da Amazônia estão preocupadas com a convergência entre crimes ambientais e crime organizado, principalmente o narcotráfico.
O Diretor-Geral da Polícia Federal, Luiz Fernando Corrêa, concorda com o general Heleno e conta que o plano estratégico da instituição, para 2022, aponta a Amazônia como uma área crítica. Ele está, no momento, visitando todas as unidades da Polícia Federal na Amazônia, para fazer o levantamento dos problemas e necessidades para criar as condições necessárias de ação prioritária naquele “hotspot” ambiental e criminal.
Já há sinais de presença colombiana nas operações ilegais nos rios amazônicos. Recentemente, no último inverno, um vigilante do Parque de Jaú foi ameaçado de morte, porque reprimia o tráfico de espécies de peixes ornamentais e teve que se mudar com a família para Manaus. Um morador do parque foi espancado, porque suspeitaram que ele havia denunciado o tráfico às autoridades. Em ambos os casos havia colombianos envolvidos.
São muitas as rotas e muitos os valores traficados. A rota do tráfico de quelônios, da pesca ilegal e de alevinos de aruanã vai desde o lago Carabinani, em Roraima, até o Jaú, as Anavilhanas, seguindo para Manacaparu, saída para o Solimões e Manaus.
Convergência da bandidagem
O caso dos alevinos de aruanã é ilustrativo. Seu destino é, principalmente, o mercado asiático, onde acham que ele dá sorte, como o “peixe-dragão”. Sua comercialização é permitida na Colômbia, onde é um item de exportação importante, mas é proibida no Brasil. Sua captura na Colômbia é predatória e as águas brasileiras se tornaram fonte de fornecimento. É uma atividade importante na região do Alto Solimões e no vale do rio Javari, na parte ocidental do estado do Amazonas, onde há muitos lagos, ricos em aruanã e a fiscalização é praticamente inexistente.
Uma região de grande concentração de povos indígenas, eles próprios capturam os alevinos e trocam por mantimentos com os “piabeiros”. De lá, normalmente, esse material é embarcado no aeroporto de Letícia rumo a Bogotá, de onde é exportado. Mas quando a captura desce o Solimões ou o Negro, essa rota de saída fica longe e mais arriscada. A alternativa mais segura é descer rumo a Manaus e de lá para Belém. A mesma rota da droga.
Todos esses indícios de potencial convergência entre o crime ambiental e o narcotráfico, dão razão ao general Heleno. Ele argumenta que o Ibama/ICMBio, tem muito pouco efetivo. “Esse é meu grande pleito: que o Brasil possa unir as forças de repressão ao ilícito”. O exército, hoje, tem poder de polícia na região de fronteira, mas não além das fronteiras, jurisdição da Polícia Federal e das polícias estaduais. O exército não tem treinamento para reprimir o narcotráfico, nem para agir contra os crimes ambientais. Precisa da cooperação da Polícia Federal, em um caso, e das autoridades ambientais, no outro. Por outro lado, o exército tem o que falta aos dois: efetivos com grande treinamento em operação de selva.
Tropa de elite
A maioria dos soldados da força amazônica é formada por indígenas, que mantêm relações com suas comunidades e não abandonaram suas culturas. Aquelas são as terras deles, que conhecem como ninguém. Segundo o general, eles caminham na mata de uma outra maneira, “lêem” a mata de um modo muito mais eficiente, o que lhes dá uma mobilidade espantosa para quem não é nativo daquelas selvas.
O general fala com entusiasmo, por exemplo, do sucesso da operação conjunta exército/Ibama/Polícia Federal, em fevereiro, que desmontou um garimpo ilegal, no rio Puruê, na Estação Ecológica Juami-Japurá, que funcionava lá desde 1994. Foram apreendidas nove dragas, quatro flutuadores e três empurradores e aplicadas multas pesadas. O material apreendido está em Tefé. A rota de fuga dos garimpeiros era pela Colômbia.
A Operação Poraquê não tem seu foco exclusivo na simulação de um teatro de guerra. Ela tem objetivos estratégicos mais amplos, inclusive voltados para a possibilidade desse tipo de operação conjunta, para restaurar a autoridade pública na região e estabelecer o império da lei. A operação do Diretor-Geral da Polícia Federal também. Há a clara consciência de que a situação na Amazônia está escapando ao controle. Esse patrimônio de valor crucial no século XXI está sob forte ameaça e ela não é externa apenas, é sobretudo interna.
Sem o restabelecimento da autoridade na região Amazônica, nesse momento somente exercida na plenitude em operações eventuais, como essa das Forças Armadas, ou a operação Arco de Fogo, da Polícia Federal e do Ibama, não há como enfrentar os problemas da Amazônia. Sem autoridade que imponha o império da lei, não há como promover a regularização fundiária, acabar com a grilagem, reprimir a pistolagem, impedir o desmatamento, a pesca e a caça ilegais.
O governo brasileiro vive defendendo nossa soberania intocável sobre a Amazônia. Pura fanfarronice, com péssimos resultados. Não temos soberania sobre a Amazônia. A autoridade pública não controla seu território. Hoje, ela tem vastas extensões de território sem lei e ameaça concretamente a segurança nacional. Uma operação solidária das Forças Armadas, da Polícia Federal e do Ibama/ICMBio, poderia começar esse processo de restauração da autoridade pública na Amazônia e de consolidação do estado democrático de direito na região.
Leia também a coluna de Míriam Leitão, em O Globo ou em seu blog. Fizemos uma apuração conjunta dessa história sobre a possível operação conjunta para combater o crime que destrói a Amazônia.
(Por Sérgio Abranches, OEco, 06/08/2008)