Algumas das supostas soluções para a crise da escassez de alimentos estão nos levando a relações mais desiguais entre os países e a uma agricultura mercantilista. É preciso evitar que se distorça uma boa idéia. Ao abrir a Conferência de Alto Nível sobre Segurança Alimentar Mundial, no dia 3 de junho, afirmei que “a solução estrutural para o problema da segurança alimentar é aumentar a produtividade e a produção nos países de baixa renda com déficit de alimentos”.
“Isso requer, além de ajuda ao desenvolvimento, soluções inovadoras. São necessárias alianças de risco compartilhado, ou joint-ventures, entre os países que contam com esses recursos financeiros e aqueles que possuem terra, água e recursos humanos. Somente assim será possível assegurar um desenvolvimento agrícola sustentável em um contexto de relações internacionais mais eqüitativas”, dizia eu. Entretanto, algumas negociações estão levando a relações menos eqüitativas e a uma agricultura mercantilista e de curto alento.
Vale a pena mencionar as muitas iniciativas adotadas na América Latina, África, Ásia e Europa oriental, cuja implementação desperta preocupação e requer urgentes correções. O propósito era atingir sociedades mistas, em que cada parte contribuísse segundo suas vantagens comparativas. Uma aportaria capacidade financeira e administrativa e a garantia de mercados para os produtos. A outra entraria com terra, água e força de trabalho. A complementação de conhecimento técnico, econômico, financeiro, legal e fiscal, e conhecimento do ambiente social, natural e cultural formaria uma base sólida para que as duas partes assumissem riscos e benefícios de uma cooperação de longo prazo. Contudo, o que ocorre é que uma parte pretende controlar o papel que cabe à outra.
As compras de terras agrícolas ou longos contratos de arrendamento são os favoritos dos investidores estrangeiros. Em alguns países, onde a terra é um produto, cotado como qualquer outro e utilizado como refúgio da desvalorização da moeda, são freqüentes os protestos de camponeses, trabalhadores agrícolas e povos indígenas. Em outros casos, a apropriação de terras é fonte de conflitos abertos ou latentes. Se a isto somarmos os valores emocionais ou mesmo religiosos depositados no que constitui um dos fundamentos da soberania nacional, é fácil imaginar o perigo de distúrbios quando a terra cai em mãos estrangeiras.
Este é um problema grave e global, se for considerado o papel da especulação e dos preços crescentes da terra, em um mundo que deveria chegar a 2050 duplicando sua produção atual para atender, entre outras questões, ao aumento da população e às necessidades das nações emergentes. A exploração dos recursos naturais com o único fim de lucro dificilmente favorece o tipo de produção cuidadosa das reservas minerais e orgânicas dos solos nem evita práticas como o desmatamento e os incêndios. Tampouco permite um uso menos poluente de fertilizantes e pesticidas, nem incentiva a coexistência de cultivos e pastagens, ou a rotação de cultivos necessária para restaurar as propriedades biológicas e nutritivas do solo.
Corremos o risco de estarmos criando um pacto neocolonial para o fornecimento de matérias-primas sem valor agregado dos países produtores, sob condições trabalhistas inaceitáveis para os trabalhadores agrícolas. É preciso evitar distorções em uma boa idéia. Estes investimentos estrangeiros diretos na agricultura devem gerar empregos, renda e alimentos, facilitando, ao mesmo tempo, a amizade entre as nações. Por isso, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) acredita que é o momento de uma profunda reflexão sobre as condições necessárias para criar alianças internacionais de sucesso para a produção de alimentos.
Quais seriam as garantias para as duas partes, os incentivos necessários, o contexto legal e as melhores condições para a produção, a industrialização e o comércio, o tipo de contrato mais apropriado para os trabalhadores, bem como para o beneficio do Estado, os pequenos agricultores e o setor privado? Estas perguntas exigem um esforço interdisciplinar de idéias e consultas entre especialistas de centros acadêmicos de excelência, com a perspectiva de um debate intergovernamental em um fórum neutro como a FAO. A adoção por consenso de um contexto de referência internacional ajudaria a eliminar as nuvens que pairam sobre nossa segurança alimentar e nos permitiria aproveitar, sem exageros, as oportunidades de uma crescente demanda agrícola. Tanto nos países quanto no mundo, “governar é prever”.
(Por Jacques Diouf*, Envolverde, Terramérica, 04/08/2008)
* O autor é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). Direitos exclusivos da IPS.