A fim de evitar novos conflitos como o que se anuncia em torno da usina de Jirau, no rio Madeira, o Tribunal de Contas da União (TCU) quer introduzir uma nova regra nos próximos leilões de hidrelétricas: a criação de barreira para impedir que empresas responsáveis pelos estudos de inventário e de viabilidade participem da licitação do mesmo projeto. A recomendação foi feita ontem pelo tribunal, que julgou duas representações - do Democratas e do deputado federal Carlos Willian (PTC-MG) - em que contestam as mudanças anunciadas pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil (Enersus), liderado pela multinacional Suez Energy, no projeto de engenharia da usina hidrelétrica de Jirau.
As representações foram encaminhadas, sem alarde e nenhuma divulgação pública, nos dias 19 e 22 de junho, pouco mais de um mês após a vitória da Suez no leilão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Ao julgar o processo, os ministros do tribunal endossaram a análise técnica, que defendeu o resultado da licitação. "Não se vislumbra, em princípio, irregularidades ou ilegitimidades no pleito do consórcio vencedor", concluíram os técnicos do TCU, no relatório enviado aos ministros.
Os analistas ponderaram que a Aneel e o Ibama ainda deverão avaliar a nova localização proposta pelo Enersus, que alterou em nove quilômetros o eixo da usina e com isso promete diminuir os impactos ambientais, além de reduzir o investimento necessário em R$ 1 bilhão. "Na hipótese de que esse novo arranjo não interfira na geração de Santo Antônio [a outra hidrelétrica do Madeira, cujo leilão foi vencido por consórcio liderado pela Odebrecht e Furnas] e nem redunde em um nível maior de degradação ambiental, conclui-se que o novo arranjo é bem mais vantajoso do que o proposto nos estudos prévios, na medida em que há uma diferença significativa no valor da obra e no prazo de execução", diz a análise do TCU.
Dividido em 67 tópicos, o relatório técnico do tribunal contraria frontalmente a linha de argumentação formulada pelos deputados democratas Rodrigo Maia (RJ) e José Aleluia (BA), bem como a de Carlos Willian, que aparentam total sintonia com os argumentos do consórcio Jirau Energia (Odebrecht e Furnas). Ao citar o deságio de 21% no leilão da usina, cujo lance vencedor foi de R$ 71,40 por megawatt-hora, o relatório conclui: "Desde que não haja comprometimento das licenças e autorizações já exaradas e de características técnicas que serão examinadas pela Aneel, entende-se que essa redução é bem-vinda e se coaduna com os princípios da modicidade tarifária e da proposta mais vantajosa para a administração [pública]".
Na conclusão, o relatório defende que as empresas responsáveis pelos estudos fiquem impedidas de participar dos leilões, para evitar "conflitos de interesse" e garantir o "princípio da isonomia". Se essa tese prosperar, pode gerar uma reviravolta nos preparativos do leilão de Belo Monte, usina no rio Xingu (PA) com potencial para mais de 11 mil MW, que deverá ser licitada em 2009. "Essa colocação faz ensejar a necessidade da revisão do modelo como os estudos de viabilidade e de inventário são financiados, pelo menos para os megaempreendimentos como Jirau, Santo Antônio e, em breve, Belo Monte. Na medida em que se permite que os executores dos estudos de viabilidade e de inventário participem do leilão de energia, estabelecem-se possibilidades danosas de conflitos de interesses, na forma de assimetria de informações, uma vez que podem influir na melhor escolha das repartições de quedas, prejudicando assim incontestavelmente o princípio da isonomia."
Já no voto do ministro-relator, Benjamin Zymler, e no acórdão final o tribunal foi mais cauteloso. Sem acatar a argumentação das representações, os ministros determinaram à área técnica que "acompanhe os desdobramentos" do leilão e veja o impacto das mudanças propostas pelo Enersus "tão logo seja assinado o contrato" de concessão da usina.
(Por Daniel Rittner, Valor Online, 31/07/2008)