Terceira maior região de São Paulo em termos populacionais, a Baixada Santista possui grande importância econômica para o Estado, representada principalmente pelo parque industrial de Cubatão e pelo Porto de Santos. Considerado o maior e mais importante complexo portuário da América do Sul, Santos movimenta cerca de 40 milhões de toneladas de carga por ano, o que representa mais de um terço de todo o comércio exterior do Brasil. Apesar da grande vocação portuária, a Baixada Santista, formada por nove cidades – Peruíbe, Itanhaém, Bertioga, Guarujá, Mongaguá, Praia Grande e São Vicente, além de Cubatão e Santos – também tem destaque nas atividades industriais e de turismo.
No entanto, não é só no âmbito econômico que a Baixada é vista com importância. A região é morada de várias espécies ameaçadas de extinção, como a toninha, a tartaruga-de-couro e os guarás, que habitam manguezais e bancos de sedimento de sua faixa litorânea. Nesta luta entre a sobrevivência das espécies e a fome do setor industrial, não é difícil imaginar que os ecossistemas é que são, na maioria das vezes, os derrotados. Segundo o biólogo Denis Abessa, professor da Unesp São Vicente, os maiores vilões são a ocupação humana não planejada, que provoca perda de habitat e poluição em diversos níveis, e a pesca predatória.
Para tentar resolver alguns desses problemas – e propiciar a expansão das atividades econômicas da região – o Governo do Estado de São Paulo vem, há dez anos, trabalhando no Zoneamento Ecológico-Econômico da Baixada Santista, cuja redação preliminar já foi concluída. Entretanto, ele ainda nem saiu do papel e já começa a gerar controvérsias. A principal crítica recai nos interesses que estão por trás do documento. Segundo entidades ambientalistas, várias das determinações do documento beneficiam o setor produtivo da Baixada, em detrimento de medidas de conservação.
Parte das etapas de regulamentação da Lei n° 10.019/98, que instituiu o Plano Estadual de Gerenciamento Costeiro, o ZEE já foi revisto várias vezes pelo Grupo Setorial de Coordenação da Baixada Santista (GSBS) e teve diversas redações diferentes. A última delas passou por consulta pública recentemente e, há cerca de duas semanas, terminou o prazo para que propostas de modificação do documento fossem enviadas à Secretaria Estadual de Meio Ambiente de São Paulo. Ainda não há data prevista para a assinatura definitiva do governador José Serra.
Todas as propostas de ocupação do solo da Baixada Santista contidas no ZEE foram amplamente discutidas nas audiências públicas e internamente pelos membros do GSBS, além de terem sido submetidas a votação. A primeira vista, tal processo poderia levar à conclusão de que as propostas são frutos de um debate democrático. No entanto, é justamente na configuração do Grupo Setorial que recaem as primeiras críticas.
Segundo Fabrício Gandini, membro do GSBS e diretor presidente do Instituto Maramar, OSCIP que defende o manejo responsável dos recursos naturais da Baixada, a forma como o Grupo foi constituído favoreceu os interesses do setor imobiliário. “O grupo é representado por duas ONGs que estão envolvidas com a questão ambiental, o Instituto Maramar e a Caá – Oby, que sempre defenderam a questão dos direitos coletivos com viés ambiental. As outras sete ONGs [representantes da sociedade civil no GSBS] representam os interesses da indústria e o setor da construção, como o sindicato dos engenheiros”, reclama Gandini.
O resultado desta formação “tendenciosa” é um zoneamento que estimula a expansão urbana em áreas que deveriam ser preservadas, como os remanescentes de Mata Atlântica e restinga da Baixada. Entre os pontos do ZEE contestados por Gandini está a rotulação de frações de manguezais do Estuário de Santos como Z5 - que, pela definição da minuta do ZEE, é uma “zona que apresenta a maior parte dos componentes dos ecossistemas primitivos degradada ou suprimida” e onde é permitida a expansão de residências e indústrias – e a rotulação do canal de Bertioga, onde pretende-se criar uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável, como Z4, o que permitiria o uso de até 60% da área para construção de casas, comércio e prestação de serviços.
Outro ponto forte da proposta de alteração do ZEE apresentada pelo Instituto Maramar é o zoneamento marinho. De acordo com Gandini, até hoje o conhecimento sobre o uso do mar é muito restrito, o que levou a uma formulação inadequada de ocupação. “Se você pegar o artigo 69 da minuta atual ele diz que atividades da pesca esportiva e atividades relacionadas a dragagem não devem ser contempladas no ZEE. A gente quer a morte desse artigo, porque as atividades que são de fato impactantes não são consideradas”, argumenta o diretor.
Para tentar resolver o problema, o Instituto Maramar realizou consultas públicas com pescadores para identificar os principais pontos de conflito existentes. Desse levantamento surgiu um zoneamento “paralelo”, que também foi enviado para avaliação do GSBS.
Papagaio-de-peito-roxo
Além do Instituto Maramar, outras ONGs que não participam do Grupo Setorial reclamam da proposta de ZEE da Baixada Santista. Uma delas é o Instituto Ibiosfera, que contestou cinco pontos do documento. Entre eles está a transformação de uma grande área limite do Parque Estadual da Serra do Mar, na Bacia do Rio Itanhaém, em Z3 – onde são permitidos assentamentos urbanos com características rurais, atividades de agropecuária e silvicultura, por exemplo.
“Nosso receio é que a definição da área como Z3 empurre muita gente para lá e, quando for feita a revisão do Zoneamento, daqui a cinco anos, ela vire Z4, por estar muito modificada”, diz Daniel Turi, secretário geral da ONG. Além de ser zona de amortecimento do Parque Estadual, a área identificada pelo Ibiosfera é morada de espécies em risco de extinção, como o papagaio-de-peito-roxo.
A entidade também reclama da classificação Z4 para o trecho da Rodovia Rio-Santos (BR 101), na área denominada “Fazenda Cabuçu”, em que se encontram nascentes de diversos rios, e Z4 e Z5 para a praia de Itaguaré, em Bertioga, que hoje ainda está preservada, mas que pode ser aberta a novos empreendimentos imobiliários de alto padrão se a proposta de Zoneamento for aceita.
A Fundação Florestal, órgão da própria Secretaria Estadual de Meio Ambiente, também tem propostas de modificações do ZEE a apresentar ao Grupo Setorial. Segundo Adriana Mattoso, gerente de Conservação Ambiental da Fundação, o órgão formulou um documento em que são apresentadas modificações visando a manutenção da conectividade das áreas florestais, principalmente as contíguas ao Parque Estadual da Serra do Mar e as faixas de remanescentes que ligam a serra à área litorânea. Para isso, foram apresentadas nada menos que 60 sugestões de alteração na minuta do Zoneamento.
“Já enviamos nossa proposta para a Coordenadoria de Planejamento Ambiental [da SMA] e solicitamos uma reunião. O Zoneamento precisa de um aperfeiçoamento, sim. Precisamos equilibrar melhor as forças e nesse ponto nossa posição está mais próxima à posição das ONGs, do que à posição dos empreendedores, evidentemente [...] O que estamos propondo é o que para nós é o ideal, mas a gente sabe que é uma proposta que vai ter negociação”, diz Adriana.
A favor
Apesar das críticas, a proposta do ZEE da Baixada Santista é defendida por setores da sociedade civil e também pela SMA. Segundo Paulo Velzi, membro do GSBS e presidente da Associação dos Engenheiros, Arquitetos e Agrônomos de Bertioga, o Zoneamento não é o ideal para nenhum dos setores, mas contempla todos eles por ter sido fruto de intenso debate. “Acho estranhas [as reclamações] porque as entidades ambientalistas participaram do processo seletivo para a formação do Grupo Setorial e o zoneamento está sendo construído há quase dez anos em um processo bastante democrático”, diz.
De acordo com ele, em uma proposta de ocupação do solo é impossível preservar todas as áreas naturais, já que algumas cidades, por sua própria vocação, precisam crescer. No entanto, Valzi defende que este ônus do zoneamento será minorado com as exigências ambientais existentes para a implantação de projetos de expansão urbana e portuária. “Se não ocuparmos ordenadamente estes territórios, alguém vai invadir. Queremos evitar essas coisas”, resume Velzi.
Já para Tércio Carvalho, Coordenador de Planejamento Ambiental da SMA, segmento da Secretaria onde o ZEE da Baixada Santista está sendo desenvolvido, é normal que haja discordância quanto ao produto final dos trabalhos. “O zoneamento é pactuado, então ninguém vai concordar 100% com ele mesmo”, diz.
No entanto, segundo o coordenador, não são justas as acusações de que os setores imobiliários e da construção civil foram beneficiados na época da formação do GSBS. “A constituição do grupo foi feita por meio de votação. Se naquele exato momento da sua constituição o movimento ambientalista não estava atento para o zoneamento, não pode depois do jogo constituído e das regras estabelecidas dizer que a gente privilegiou o setor produtivo”, defende.
Em sua análise, Carvalho diz acreditar que esta “falta de atenção” dos ambientalistas é um reflexo de como o movimento estava estruturado há alguns anos. Segundo ele, atualmente o setor está muito mais organizado e articulado e ainda tem mecanismos para defender seu ideal de zoneamento. Um deles foi o próprio envio de propostas de alteração da minuta, que contemplaram questões que até mesmo o Ibama e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente foram contra, como a expansão portuária de Peruíbe e Santos.
Apesar disso, como tais propostas de alteração serão avaliadas pelo próprio Grupo Setorial, Carvalho sugere que o movimento ambientalista se articule com membros das esferas superiores de decisão. “Se o movimento quiser fazer mudanças significativas no zoneamento, eu proponho que ele se articule com a bancada ambientalista do Consema, porque ali o setor ambientalista está mais bem representado que o setor produtivo, há uma outra composição de forças”, recomenda.
A minuta do projeto de Zoneamento Ecológico-Econômico da Baixada Santista ainda passará por três etapas de avaliação. A primeira será feita pelo Grupo Setorial de Coordenação da Baixada Santista, a segunda pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) e a terceira pela Assembléia Legislativa, para só então ser enviada ao governador José Serra. Em qualquer uma das etapas o documento poderá sofrer modificações.
(Por Cristiane Prizibisczki, OEco, 30/07/2008)