RIO DE JANEIRO – O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, anunciou nesta terça-feira (29) em Genebra que as negociações multilaterais da Rodada de Doha _ que se estenderam por nove dias na cidade suíça _ foram encerradas sem que os países chegassem a um acordo. O fracasso de mais uma tentativa de avanço na liberalização do comércio mundial já era esperado, pois parecia intransponível a divergência entre os países mais industrializados e a maioria dos países emergentes frente a temas como o fim dos subsídios agrícolas ou a abertura de mercados para bens e serviços.
Num último esforço, os diplomatas passaram toda a noite de segunda-feira (28) e parte da madrugada seguinte reunidos a portas fechadas para tentar aprovar o pacote apresentado na véspera por Lamy. Países como o Brasil e a Austrália, que já haviam aceitado o acordo, tentavam mediar as negociações, mas no fim prevaleceram as diferenças entre os Estados Unidos e o bloco liderado por China e Índia. Assim sendo, foi declarada encerrada mais essa tentativa de desbloquear a rodada de negociações iniciada há sete anos na cidade de Doha, no Qatar.
O próprio Pascal Lamy coordenou reuniões de emergência com chineses e indianos, mas um ponto impediu o fim do impasse: o direito às salvaguardas agrícolas especiais concedido aos países em desenvolvimento. Por este mecanismo, os países em desenvolvimento têm o direito de elevar suas tarifas sempre que houver um surto de importação de um determinado produto. Apesar da oposição dos EUA, esse ponto acabou sendo incluído no relatório de Lamy, mas a falta de acordo sobre os detalhes (o diabo mora neles) colocou tudo a perder.
China e Índia defendem o direito de acionar o mecanismo de salvaguardas especiais sempre que as importações de um determinado produto subirem 10% em relação ao volume médio dos últimos três anos. Os EUA, com o apoio da União Européia e a discreta anuência de Japão, Brasil e Austrália, querem que as salvaguardas somente sejam acionadas quando as importações subirem 40% em relação ao volume médio dos últimos três anos. Como ninguém cedeu, as negociações foram encerradas no início da noite desta terça-feira (horário da Suíça).
Uma derradeira tentativa de salvar um acordo será empreendida pelos diplomatas durante a reunião do Comitê de Negociações Internacionais da OMC, que começa em poucos dias, também em Genebra. As possibilidades de reversão do quadro, no entanto, são remotas: “Foi um fracasso, mas espero que, ao menos, o que discutimos aqui durante nove dias sirva de base para uma nova abordagem no futuro”, disse à agência Reuters o ministro do Comércio da Nova Zelândia, Phill Goff.
Chefe da delegação dos EUA, Susan Schwab também evitou falar em morte definitiva da Rodada de Doha: “Os Estados Unidos se mantém comprometidos com a Rodada de Doha. Este não é o momento de se falar em colapso definitivo das negociações. O compromisso dos Estados Unidos continua na mesa, mas esperamos respostas recíprocas”, disse. A realidade, no entanto, é que o fracasso das negociações em Genebra, se não for revertido a tempo, pode significar o enfraquecimento definitivo da própria OMC.
O tom norte-americano durante as negociações foi menos ameno do que o adotado por Schwab ao fim das reuniões. Em entrevista concedida na segunda-feira (28) ao jornal O Globo, um outro representante do governo dos EUA, David Shark, condenou chineses e indianos por não aceitarem o pacote proposto por Lamy: “Infelizmente, uma economia emergente importante _ a Índia _ imediatamente rejeitou o pacote. Em seguida, outra economia emergente _ a China _ abandonou as discussões. Essas ações colocaram a Rodada de Doha em seu mais grave risco nesses sete anos”, disse.
A proposta dos EUA
No pacote apresentado aos países emergentes, os EUA, entre outras coisas, se comprometem a estabelecer um limite de US$ 14,5 bilhões por ano para o subsídio doméstico a seus agricultores. Atualmente, esse limite é de US$ 40 bilhões, mas a redução teria pouco valor prático, pois, para se ter uma idéia, o valor total do subsídio pago nos EUA no ano passado foi de US$ 8 bilhões. A União Européia, por sua vez, aceitou reduzir 80% de seus subsídios domésticos para um limite máximo de US$ 36 bilhões por ano. Os países ricos, por fim, aceitaram fazer um corte médio de 54% em suas tarifas agrícolas.
Em contrapartida, os países ricos pedem uma maior abertura dos mercados emergentes para seus produtos industrializados (com corte médio de tarifas também de 54%) e para os setores de bens e serviços públicos. A troca, no entanto, não foi considerada vantajosa pela maioria dos países que compõem o G-20, uma vez que não se garantiu a competitividade de seus produtos nos mercados dos países ricos: “Não existe acordo se não pudermos proteger nossos milhões de pequenos agricultores”, resumiu o ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath.
Brasil, G-20 e Mercosul
Apesar de ter chegado à Genebra falando grosso, o Brasil surpreendeu ao aceitar rapidamente a proposta costurada pelos países ricos, numa postura que causou grande desconforto entre os aliados no G-20 e no Mercosul. Além de China e Índia, outros países de peso como Argentina e África do Sul se mantiveram firmes contra a proposta apresentada por Pascal Lamy. O ministro brasileiro das Relações Exteriores, Celso Amorim, lamentou o fracasso das negociações: “É incrível que tenhamos fracassado por causa de um só ponto. É lamentável o que ocorreu. Alguém de outro planeta não acreditaria que depois de todo o progresso obtido não tenhamos sido capazes de concluir as negociações. Estou muito decepcionado”, disse à Reuters.
Enquanto duraram as discussões, Amorim foi um dos que mais se esforçou para levar chineses, indianos e norte-americanos a um acordo. O ministro brasileiro também teve de gastar seu tempo para explicar aos colegas do G-20 e do Mercosul a polêmica posição brasileira: “Negociamos pensando sempre no melhor para o Brasil e no melhor para os nossos parceiros do Mercosul”, disse.
Mesmo com o risco de desconforto frente aos países aliados, Amorim e sua equipe agiram com o irrestrito apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “O Brasil não quebrou solidariedade nenhuma. Participamos do G-20, queremos que o acordo seja do interesse do G-20, mas vocês hão de convir que dentro do G-20 temos assimetrias e disparidades enormes entre os países”, disse Lula, quando as negociações ainda estavam em curso.
(Por Maurício Thuswohl, Carta Maior, 29/07/2008)