O que mais chama a atenção nesse processo de aprovar essas barragens, porém, foi o lamentável comportamento do governo do estado do Rio Grande do Sul e dos dirigentes de seu órgão ambiental, a Fepam. Eventos que deveriam envergonhar a sociedade gaúcha foram perpetrados na ânsia de aprovar, de qualquer maneira, essas obras, sem qualquer análise técnica, econômica, social e ambiental criteriosa.
Este verdadeiro repertório de práticas censuráveis foi iniciado em 20 de março de 2007 por um anúncio no Diário Oficial do RS, em sua página 16, que os EIA/RIMAS das barragens estariam disponibilizados na biblioteca da FEPAM para consulta. Ao tomar conhecimento destes estudos verifiquei uma tentativa grosseira de apresentar relatórios carentes de conteúdo técnico e ultrapassados como se fossem RIMAs. Deixei uma nota manuscrita em protesto que foi suficiente para a retirada dos pretensos RIMAs e a afirmação do presidente da época da FEPAM, feita na minha presença, de que eles nunca existiram, em uma tentativa infantil de negar uma evidência publicada no Diário Oficial do RS!
O Ambiente Já publicou
denúncia sobre esses fatos em 24/4/2007 sob título "Consultor da OEA acusa FEPAM/RS de favorecer projetos de barragens para irrigação". Da mesma forma, o Jornal Já relatou este fato em 9 de maio de 2007 em reportagem com título "Técnicos acusam ex-presidente da Fepam". Com isto foi possível interromper a manobra do governo e obrigar à FEPAM a exigir um EIA/RIMA das obras, algo que não deveria ser necessário, pois está nas suas obrigações como órgão de proteção ao meio ambiente.
Não melindrada pelo ocorrido, em agosto de 2007, a Fepam emitiu "Licenças Prévias de EIA-RIMA" que autorizaram, sem haver necessidade para tal, a "continuidade do procedimento administrativo de licenciamento ambiental prévio" dos empreendimentos das barragens do arroio Jaguari e Taquarembó. Este tipo de licença não faz parte dos documentos que são requeridos pela legislação ambiental; dar continuidade ao "procedimento administrativo de licenciamento ambiental prévio" é uma obrigação do estado para a qual não há necessidade de autorização.
O que foi mais grave é a exigência de publicação no "Diário Oficial do Estado e em periódico diário de grande circulação regional na área do empreendimento", o pedido de licenciamento, "informando que a Fepam emitiu Licença Prévia para continuidade do licenciamento, através do instrumento EIA-RIMA". Ou seja, o objetivo era tão somente iludir a terceiros (possivelmente o Governo Federal que financia os empreendimentos pelo PAC) levando ao entendimento equivocado que as Licenças Prévias haviam sido efetivamente emitidas. Isso motivou uma representação que apresentei ao Ministério Público Estadual que acionou a justiça que suspendeu, liminarmente, essas licenças.
O Ambiente Já publicou em 4 de setembro de 2007 a matéria
"Justiça do RS suspende licenças de barragens para irrigação por falta de EIA/RIMA".
Em virtude do ocorrido, foi homologado no final de 2007 um Termo de Ajuste de Conduta – TAC entre o Governo do RS e o MPE relativo às LP sem EIA/RIMA. O item 5 das resoluções é constrangedor: "a Fepam se compromete a impedir o início de qualquer obra referente aos empreendimentos enquanto não finalizado todo o processo de licenciamento de instalação".
A Fepam foi também obrigada até o dia 10 de cada mês comprovar a implementação das providências apresentadas em um cronograma de elaboração do EIA/EIMA. Um item dispõe que a Fepam, "na eventual concessão das LPs ...."; ou seja: no TAC está claro que as LPs não foram concedidas. No entanto, se houver consulta à página da Fepam pode-se verificar que estas LPs irregulares ainda estão lá, iludindo os incautos. Isto pode ser verificado em www.fepam.rs.gov.br entrando com o número 13990567070 na caixa "Consulta Rápida a andamento de Processo". Possivelmente esta "licença" foi apresentada ao governo federal como a licença prévia, mas não corresponde à verdade – não existe LP para essas obras, ainda.
Finalmente, em 9 de maio de 2008 o Diário Oficial do Rio Grande do Sul, na página 53, anunciou que os EIA/RIMAs dessas barragens estariam na biblioteca da FEPAM para consulta dos interessados. A mesma consultora que havia elaborado o pretenso estudo para a barragem do arroio Jaguari, apresentou novas versões, para ambas as barragens.
Ocorre que Estudos Prévios de Impacto Ambiental são legalmente normatizados no estado do Rio Grande do Sul pelo Código Estadual de Meio Ambiente, instituído pela Lei Estadual nº 11.520, de 03 de agosto de 2000. Nesta lei, visando a evitar que a empresa contratada para elaborar o Estudo de Impacto Ambiental de um empreendimento seja "contaminada" pela vontade de aprová-lo, como parece ter ocorrido no caso das barragens aludidas, de forma objetiva ou subjetiva, é disposto:
"Art. 76 - O Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) serão realizados por equipe multidisciplinar habilitada, cadastrada no órgão ambiental competente, não dependente direta ou indiretamente do proponente do projeto e que será responsável tecnicamente pelos resultados apresentados, não podendo assumir o compromisso de obter o licenciamento do empreendimento.
§ 1° - A empresa executora do EIA/RIMA não poderá prestar serviços ao empreendedor, simultaneamente, quer diretamente, ou por meio de subsidiária ou consorciada, quer como projetista ou executora de obras ou serviços relacionados ao mesmo empreendimento objeto do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA).
§ 2° - Não poderá integrar a equipe multidisciplinar executora do EIA/RIMA técnicos que prestem serviços, simultaneamente, ao empreendedor."
No entanto, pode ser mostrado com facilidade que esta consultora tem um longo envolvimento com esses empreendimentos, o que deveria inabilitá-la para elaborar os seus EIA/RIMAs à luz da legislação. A saber:
I. Em 2001, a apresentou um estudo denominado Estudo de Impacto Ambiental do Sistema de Irrigação Projetado na Bacia Hidrográfica do Arroio Jaguari em contrato com Secretaria de Obras Públicas e Saneamento – SOPS, atual Secretaria de Habitação, Saneamento e Desenvolvimento Urbano, o empreendedor dessas obras, cuja folha 7 esclarece que as suas atividades foram iniciadas em conjunto com os técnicos da empresa responsável pelo Projeto Final de Engenharia do Sistema de Irrigação da Bacia do Arroio Jaguari. Esta declaração atesta que o envolvimento da consultora responsável pela elaboração dos EIA/RIMAs das barragens com os projetos e viabilização dos empreendimentos é antigo.
II. Ademais, em 22 de Julho de 2004 a consultora foi contratada pela SOPS para "Execução dos serviços de consultoria, compreendendo apoio gerencial e operacional, elaboração de estudos técnicos, programas ambientais, diagnósticos, prognósticos, planos, sistemas, programas de qualidade e projetos, no âmbito da SOPS". Muitos desses estudos, amparados por este contrato guarda-chuva, dizem respeito a partes do projeto das barragens dos arroios Jaguari e do Taquarembó, o que pode ser facilmente verificado nos processos administrativos da SOPS. A rigor, a consultora se tornou um escritório de projetos para a SOPS, tratando de adaptações e atualizações nos projetos desses empreendimentos, originalmente propostos por outra, entre outras tarefas. Essa atividade, iniciada em 2004 teve seqüência ao longo do tempo, por meio de aditivos diversos, como será a seguir comentado.
III. Em 30 de Dezembro de 2004 o contrato foi aditado para "Readequação da programação de execução de itens, com acréscimo, e supressão de serviços constantes do cronograma físico financeiro do contrato, permanecendo inalterados os prazos e valor das parcelas".
IV. Em 28 de Março de 2006, houve o segundo aditamento, com objeto de "alteração dos quantitativos dos serviços discriminados nas propostas da empresa, consoante Informação nº227/05/PDPE, oriunda do processo nº1409-2200/05-2".
V. Em 19 de setembro de 2006 mais um aditivo, o terceiro, objetivando o "aditamento de acréscimo de serviços".
VI. Finalmente, em 28 de junho de 2007, houve o quarto aditamento, que "visa aditamento de acréscimo de serviços com vistas ao atendimento ao constante dos Termos de Referências, integrantes deste processo, referentes aos Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental – EIA – RIMA dos Sistemas que compõem todos os empreedimentos das Barragens dos Arroios Jaguari e Taquarembó, na Bacia Hidrográfica do Rio Santa Maria, Metade Sul do Estado, conforme acréscimos descritos na Cláusula Segunda deste aditivo".
Logo, a consultora mencionada, que foi contratada em 2004 para servir de escritório de "serviços de consultoria, compreendendo apoio gerencial e operacional, elaboração de estudos técnicos, programas ambientais, diagnósticos, prognósticos, planos, sistemas, programas de qualidade e projetos" pela SOPS, atuando nas diversas alterações e adaptações dos projetos das barragens do Jaguari e do Taquarembó, é adiante contratada, pelo mesmo instrumento - o que é ainda mais grave - para elaborar o estudo de impacto ambiental de ambos os empreendimentos, em flagrante e inequívoca contradição ao que dispõe o Código Estadual de Meio Ambiente, em seu art. 76, parágrafo 1º, supra-mencionado.
O que chama mais a atenção é que a justificativa da SOPS (na época a Secretaria de Habitação, Saneamento e Desenvolvimento Urbano - SHSDU), para esse aditivo, como pode ser verificado textualmente no processo era que a empresa já havia realizado um estudo desta natureza para essas barragens que, porém, foi necessário alterar diante de Resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente que restringe o licenciamento a barragens que tenham como objetivo principal a irrigação, como seria a natureza original do projeto; por isto, ele foi complementado de forma a inserir outros objetivos, como o abastecimento público, e isso motivou a necessidade de ser modificado o Estudo de Impacto Ambiental. Como a empresa já havia realizado o estudo na primeira versão, seria mais adequado que realizasse a complementação amparada pelo aditivo. Portanto, no próprio texto do aditivo a SOPS confessa suas intenções de aprovar as barragens, seja de uma forma (para irrigação) ou de outra (para abastecimento).
A conclusão é que a consultora que realizou as adaptações ao projeto, para que ele pudesse contornar as restrições impostas pelo Conama, é a mesma que foi contratada para elaborar o EIA/RIMA destes empreendimentos, em um claro e inequívoco desrespeito ao § 1° do artigo 76 do Código Estadual de Meio Ambiente: "A empresa executora do EIA/RIMA não poderá prestar serviços ao empreendedor, simultaneamente, quer diretamente, ou por meio de subsidiária ou consorciada, quer como projetista ou executora de obras ou serviços relacionados ao mesmo empreendimento objeto do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA)".
Pelas razões amplamente demonstradas e que podem ser comprovadas por publicações no Diário Oficial do Rio Grande do Sul, e que poderão ser ainda mais aprofundadas em consultas aos processos da SOPS relativos ao contrato com a consultora, fica caracterizado que ela, responsável pela elaboração do EIA/RIMA das barragens dos arroios Jaguari e Taquarembó:
a) dependia diretamente do proponente do projeto, em função de contrato guarda-chuva que vigia desde 2004, com objetivo de adaptar e alterar o projeto dos empreendimentos, entre outras funções;
b) prestou serviços ao empreendedor, simultânea e diretamente, ou por meio de membros da equipe técnica que elaborou os estudos, como projetista ou executora de serviços relacionados ao mesmo empreendimento objeto do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA), tendo como vínculo o mesmo contrato que amparou a elaboração do EIA/RIMA;
c) e, em função desses fatos, não possui a independência necessária e legalmente requerida pelas normas legais para produzir um estudo de impacto ambiental dos empreendimentos em apreço.
(Por Antonio Eduardo Lanna*, Ambiente JÁ, 24/07/2008)
* Antonio Eduardo Lanna, engenheiro civil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Hidrologia Aplicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ph.D na área de planejamento e gestão de recursos hídricos pela Colorado State University, EUA, ex-professor titular do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS onde se dedicou ao ensino de graduação e de pós-graduação, pesquisa e extensão na área de economia, otimização planejamento, gestão de recursos hídricos, pesquisador nível I-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Atualmente atua como consultor de organismos nacionais e internacionais na área de recursos hídricos e é pecuarista na região afetada pela inundação da barragem do rio Jaguari