Quis o destino que a extensa matéria da revista Veja sobre o pretenso renascimento da indústria nuclear fosse publicada justamente no fim de semana em que o fantasma da ameaça radioativa volta a assustar a Europa. Enquanto os repórteres da publicação brasileira teciam loas à indústria nuclear, o noticiário europeu girava em torno dos problemas de segurança das usinas francesas - duas delas apresentaram vazamento de líquido contaminado por urânio este mês, colocando em xeque o consumo da água de rios adjascentes aos reatores.
O material publicado pela Veja, intitulado "O que era medo se tornou esperança", pouco ou nada acrescenta à discussão sobre o uso de usinas atômicas para suprir as necessidades energéticas dos países, e se vale de muitas distorções e equívocos para justificar o seu uso no combate ao aquecimento global.
Em dado momento diz que "até mesmo ambientalistas, antes agressivos opositores da energia nuclear, passaram a defendê-la como alternativa aos combustíveis fósseis", mas cita como exemplo os nomes de sempre quando o assunto surge: James Lovelock e Patrick Moore. E só. Muito pouco, convenhamos, para considerar que o movimento ambientalista mudou de opinião em relação ao tema.
Apesar de dedicar seis páginas ao assunto, a revista Veja não explica a contento muitos dos pontos delicados abordados, como o custo da energia nuclear ou a grave questão do lixo radioativo. Para por esses importantes pingos nos respectivos 'is', o Greenpeace joga aqui alguma luz no assunto.
Um dos equívocos que mais saltam aos olhos é em relação às vítimas fatais por acidentes em usinas nucleares. Segundo a matéria, não passam de 9 mil desde a década de 1950, incluindo aí as mortes provocadas pelo acidente da usina ucraniana de Chernobyl (1986). Não fica claro se a reportagem considera nessa conta os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), que a própria revista cita, de que milhares morreram nos anos seguintes ao acidente por conta da radiação, mas de qualquer maneira o número não bate com a realidade. Segundo levantamento feito pelo Greenpeace para o relatório sobre os 20 anos do acidente de Chernobyl, o número de vítimas pode chegar a 90 mil, considerando os inúmeros casos de incidência de câncer verificados na Rússia, Ucrânia e Bielorússia, países que sofreram diretamente com a nuvem radioativa após a explosão do reator em 1986.
Sobre o lixo nuclear, a reportagem é ainda mais vaga. Admite ser um problema sem solução até agora mas contemporiza afirmando que depósitos subterrâneos como o de Onkalo, na Finlândia, e Yucca Mountain, nos Estados Unidos, seriam uma saída para o problema. Mas como? Ambos os projetos citados estão atrasados, apesar das dezenas de bilhões de dólares gastos, e não se mostraram seguros o suficiente para serem apresentados como solução definitiva. Enquanto isso, o mundo que tem hoje mais de 400 usinas nucleares continua sem um depósito definitivo para o lixo nuclear.
As afirmações de que a energia nuclear é a solução para enfrentar a alta do preço do petróleo e o aquecimento global também não se justificam. A matéria indica a energia nuclear como forma de se reduzir a dependência dos países para o petróleo, devido ao custo, mas não leva em conta problemas como o alto preço das obras (e seus atrasos), além da necessidade de tratamento adequado aos rejeitos radioativos, ainda sem solução. Isso sem falar na possibilidade de graves acidentes e vazamentos, que podem provocar contaminações de pessoas e do meio ambiente, e do próprio legado do lixo nuclear às gerações futuras. A energia nuclear desvia ainda o foco da real solução para o aquecimento global, que é o investimento em energias renováveis, que são limpas, seguras e mais baratas no médio e longo prazos, levando-se em conta todas as variáveis em questão.
O custo do quilowatt instalado para usinas nucleares já é estimado entre US$ 5 bilhões e US$ 12 bilhões (para uma única usina), de acordo com o Relatório Moody “New Nuclear Generation in the United States” (Moody’s Investor Service). E as estimativas atuais não levam em consideração os custos de descomissionamento e gerenciamento de resíduos radioativos - tanto na mineração do urânio como no lixo final. O custo dessa disposição definitiva de rejeitos de alta e média radiatividade é estimado hoje entre US$ 21 bilhões e US$ 90 bilhões na França, país tido como exemplar no uso de energia nuclear. Boa parte disso financiado com dinheiro público, por meio de generosos subsídios.
Esses e outros dados dão um retrato mais acurado do que representa em termos ambientais, econômicos e energéticos a escolha da opção nuclear para o mundo. Seria importante que fossem colocados na mesa quando se discute o assunto, mas a revista Veja mostra apenas um lado do problema e a matéria tenta desfibrilar um cadáver com base em argumentos repetitivos e vagos. É pouco para impedir o inevitável: o futuro é renovável.
(Greenpeace, 22/07/2008)