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passivos da pecuária desmatamento da amazônia
2008-07-23
Olhe bem para o bife que está no prato à sua frente.  E agora responda a pergunta: será que ele contribuiu para o desmatamento da Amazônia?  Resposta certeira a esta questão, hoje, ninguém tem.  Mas pode ter em 45 dias, se o plano que está em gestação no Ministério do Meio Ambiente (MMA) e em execução pelo Ibama, com frentes disseminadas por Estados e costuradas por algumas ONGs, der resultado.  Está em curso uma espécie de "moratória da carne".

As bases da operação lembram as da moratória da soja, que desde 2006 envolve produtores e exportadores de grãos no compromisso de não comercializar soja de áreas desmatadas da Amazônia e que foi costurada por ONGs como o Greenpeace.  No caso da carne, a história é mais difusa e o setor, mais complicado.  O Brasil é o maior exportador do mundo, o quarto mercado consumidor e a pecuarização da Amazônia, nos últimos cinco anos, acontece com vigor nunca visto antes.

No início de setembro termina o prazo dado pelo Ibama a 86 frigoríficos que atuam na Amazônia Legal e que foram notificados a dizerem de quem compram bois e para quem vendem carne.  A estratégia é monitorar a cadeia produtiva pelo miolo.  Os frigoríficos terão que dar informações relativas aos seus fornecedores, à periodicidade com que recebem a carne, compras e vendas dos últimos seis meses.  Neste rastreamento constarão nomes de produtores e de propriedades, o total de animais comprado de cada fornecedor, o número das Guias de Transporte Animal (GTAs) emitidas no semestre.  "Entregamos em mãos as notificações aos frigoríficos para que vejam que estamos preocupados com o tema e que vamos cobrar", diz Flavio Montiel, diretor de proteção ambiental do Ibama.  "Queremos rastrear como se dá a movimentação bovina dentro da Amazônia."

Em paralelo, o Ministério da Agricultura está informatizando todo o cadastro de produção bovina no país, que ainda hoje está 99% em papel.  A previsão é ter detalhes online sobre os bois em seis meses.  Outra iniciativa digital é montar um sistema que permita consulta pública, no site do Ibama, das áreas embargadas pelo órgão.  A idéia é que seja fácil descobrir se a carne que o frigorífico está comprando vem de área desmatada e irregular.  Até porque a lei é clara: quem compra de área embargada sofre penalidade em dobro.  De janeiro a junho, o Ibama embargou 360 mil hectares na Amazônia e a expectativa é que sejam 800 mil hectares até o fim do ano.

A estratégia do governo de dar nome aos bois tem outra vertente.  Busca recadastrar propriedades rurais no Incra para descobrir de onde vem o gado - se pasta em propriedade titulada ou em terra pública grilada.  O processo de recadastramento caminha devagar, mas é a base para que produtores rurais atendam ao que foi definido no decreto 6321, de dezembro de 2007, e consigam renovar seu Certificado de Cadastro de Imóvel Rural, o CCIR.  Para o MMA, é a peça que indica quem é dono do quê na Amazônia.  No caso dos elos da carne, identifica a produção.  "Trabalhamos agora dois pontos da cadeia, junto do produtor e do frigorífico", explica Montiel.  "Não tem como parar este processo.  O Ibama virou peão boiadeiro."

Não está sozinho no processo.  Há movimentações estaduais, como no Pará.  O Estado busca regularizar passivos ambientais, enquadra na discussão a cadeia produtiva da carne e tem a ajuda de ONGs como The Nature Conservancy.  Este mês, o secretário de meio ambiente do Estado, Valmir Gabriel Ortega, reuniu-se com representantes de quatro grandes frigoríficos com presença no Estado.  "Queremos ver como criar uma agenda de diálogo", adiantou.

Na esfera federal, a programação prevê reuniões entre o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, representantes das principais redes de supermercados e da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec).  Já está em estudos a minuta de um protocolo de compromisso entre as partes.  "A idéia é que indústria e comércio entrem com suas ações de responsabilidade socioambiental e possam separar o joio do trigo", diz Montiel.

É a primeira vez que se responsabiliza uma cadeia produtiva começando por aquele que abate, passando por quem recebe e vende e chegando a quem compra.  Mas a dimensão do esforço, acreditam ambientalistas, deve ir além do poder público.  "É dever do Estado fiscalizar e garantir que o desmatamento da Amazônia não aconteça", diz Lisa Gunn, gerente de informação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).  "Mas a gente vê que o desmatamento não pára.  Acreditamos na co-responsabilidade de consumidores, empresas e governo para construir alternativas."

O Idec é uma ONG que trabalha na defesa dos direitos do consumidor e na ética das relações de consumo.  Lançou a campanha "Mude o consumo para não mudar o clima" junto da Vitae Civilis, ONG ambiental com trajetória de combate às mudanças climáticas.  Em março deste ano, elas questionaram as três maiores cadeias de supermercados no país - Wal-Mart, Carrefour e Pão de Açúcar - sobre sua atuação na cadeia da carne.  "A interface do consumidor é com o supermercado, a gente não compra do frigorífico ou do produtor", diz Lisa.  É a estratégia do dominó: "Consumidores podem pressionar supermercados, que pressionarão frigoríficos que, por sua vez, irão pressionar produtores."

"Queremos conscientizar o consumidor de que, ao comer carne, pode estar sendo co-responsável com o desmatamento da Amazônia e com a emissão de gases-estufa", diz Rubens Born, coordenador-executivo do Vitae Civilis.  O ciclo de produção de carne, segundo dados do estudo "O Reino do Gado", da Amigos da Terra-Amazônia Brasileira, indica quanto a pecuária se expande para a floresta.  Em 2007, pela primeira vez a Amazônia Legal superou os 10 milhões de abates bovinos, com aumento de 46% em relação a 2004.  A região foi responsável por 41% dos abates do Brasil - era 34% em 2004.  "Queremos mostrar que há um vínculo entre o cidadão que mora na cidade com o que acontece na Amazônia", diz Born.  "Ninguém está querendo que as pessoas se tornem vegetarianas.  A intenção é fazer pressão junto do varejista" continua.  "E assim, diminuir a pressão da pecuária sobre a floresta.  A conscientização do consumidor leva tempo, mas tem que ser iniciada."

A primeira consulta das ONGs aos três varejistas, em março, para detectar qual é a rastreabilidade da carne que vendem nas gôndolas, ficou sem resposta.  A ação continuou com campanha junto dos associados motivando-os a pedirem aos supermercados garantias de que a carne que vendem não desmata a Amazônia.  Voltaram a questionar as redes e então tiveram resposta.  As ONGs perguntavam qual a origem da carne, nome de fazendas, municípios e frigoríficos, por exemplo.  "As respostas foram vagas", avalia Lisa.  "A situação demonstra a fragilidade de avaliação desta cadeia produtiva."

Embora os três tenham assegurado suas fortes exigências e controles rígidos sobre seus fornecedores, as respostas, na avaliação do Idec, foram "insuficientes".  O Grupo Pão de Açúcar teria listado cidades e fazendas, mas a informação serve apenas para 1% da carne comercializada em suas lojas.  O Wal-Mart informou que compra carne de dois frigoríficos, mas também teria dado respostas incompletas.  O Carrefour focou sua participação no programa "Garantia de Origem", mas que contempla 40% do que é vendido pela rede.

Executivos do Carrefour afirmaram ao Valor que seus fornecedores de carne e perecíveis passam por auditoria antes de serem contratados.  E 40% dos fornecedores de todos os gêneros, que integram o Programa Garantia de Origem, enfrentam processo ainda mais rigoroso.  "Rastreabilidade, para nós, não é um problema.  Adoramos conversar sobre este assunto", disse Renata Moura, diretora de RH e Assuntos Corporativos.  Luiz Carlos Pascal, chefe da divisão de açougue do Carrefour, disse não haver risco de que o gado abatido pelos frigoríficos credenciados pela empresa venha de áreas desmatadas devido aos controles e contratos estabelecidos pelo grupo.

O Pão de Açúcar informou, por meio da assessoria de imprensa e por e-mail, que tem 17 fornecedores de carne e "somente dois frigoríficos, que representam aproximadamente 10% da carne comercializada pelas lojas do grupo" vêm de municípios da Amazônia Legal.  E que toda a carne vendida vem "de frigoríficos cadastrados, auditados e classificados."

O Wal-Mart Brasil, pioneiro em assinar a moratória da soja e com projeto de conservação de 400 mil hectares na Amazônia, num trabalho em parceria com a Conservação Internacional, diz que a meta é ter, em três anos, 20% da cadeia de suprimentos alinhada, ou seja, conhecer todas as etapas de produção dos artigos que vende e assegurar processos sustentáveis.  Daniela de Fiori, vice-presidente de sustentabilidade do Wal-Mart Brasil, lembra que a empresa criou recentemente um grupo de trabalho sobre pecuária.  "Os primeiros passos que o governo está tomando neste setor são fundamentais", diz Adrian Garda, diretor do Programa Amazônia da Conservação Internacional.  "A partir do momento em que se tem condições mínimas de controle, dá para trabalhar junto", continua.  "Não tem muita escapatória", avalia Lisa, do Idec.  "O setor vai ter que se organizar para dar transparência à cadeia."

(Valor Econômico, Amazonia.org.br, 21/07/2008)

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