“Não vou ter papas na língua, este é um debate entre uma proposta nacionalista e uma proposta entreguista”, disse ontem (21/07) pela manhã o professor de Direito Constitucional Eduardo Carrion, durante o Seminário sobre Faixa de Fronteira, na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Num ambiente tenso e por vezes acalorado, foram discutidas as proposições em tramitação no Congresso Nacional sobre a mudança da extensão das faixas de fronteira no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul. As intervenções dos convidados mostraram que o assunto é mais polêmico do que se imagina, com interesses muito fortes em jogo.
A discussão foi despertada pela atuação das indústrias papeleiras, que estão adquirindo terras para plantio de eucalipto inclusive nos limites do Rio Grande do Sul com os países vizinhos, principalmente a sueco/finlandesa Stora Enso. Uma Proposta de Emenda Constitucional do senador Sérgio Zambiasi (PTB/RS), a PEC 49/2006, propõe a redução das faixas de fronteira de 150 quilômetros para 50 quilômetros. No mesmo sentido, também estão tramitando a PEC 235/2008, de autoria do deputado federal Mendes Ribeiro Filho (PMDB/RS) e o Projeto de Lei nº 2275/07, de autoria do deputado Matteo Chiarelli (DEM/RS).
Segundo o deputado federal Vieira da Cunha (PDT/RS), relator do PL de Chiarelli, “muitos prefeitos estão inconformados com a legislação, por impedir a atração de empreendimentos (estrangeiros) em suas regiões, e defendem que a redução da Faixa seja fixada em 10 quilômetros da fronteira”. “O tamanho da Faixa é indiferente do ponto de vista jurídico. Ou criamos um Marco Regulatório, que dê segurança jurídica ao empresário brasileiro, ou vamos trabalhar gerando insegurança jurídica”, observou Zambiasi, durante o seminário promovido pela Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados.
Estavam presentes na sessão, presidida pelo deputado federal Adão Pretto (PT/RS) ,representações de cerca de 40 entidades, associações e movimentos ambientais, sociais, jurídicos e estudantis do Estado, ultrapassando um público de 250 pessoas no Plenarinho da Assembléia Legislativa, incluindo autoridades e deputados estaduais e federais, prefeitos e vereadores.
O encontro iniciou com o senador Sérgio Zambiasi apresentando dados do Incra referentes à Faixa de Fronteira, que é de 15.700 quilômetros de extensão, passando por 11 países e 10 estados. “No RS, (a faixa de fronteira) representa 49,99% do território”, disse Zambiasi. A diminuição dessa área, como querem as propostas dos parlamentares, reduziria as restrições de compra e uso de terras por estrangeiros, definidas pela Lei Federal 5.079/71, em seu artigo 12º, através da alteração da Lei Federal 6.634/79, que estabelece as restrições para compra de terras nas zonas de fronteira.
Ministério da Defesa
Representando a Secretaria de Política Estratégica e Assessoria Internacional do Ministério da Defesa, o coronel Gustavo de Souza Abreu disse que o Rio Grande do Sul é o primeiro Estado onde isso está sendo tão fortemente debatido. Ele citou estudos sobre o tema e afirmou que a redução da Faixa de Fronteira não assegura desenvolvimento para algumas regiões e pode ainda gerar tensões políticas em outros estados. “O ministro Nelson Jobim é simpático à revisão da legislação, mas nós, do Ministério da Defesa, não queremos mexer nos 150 quilômetros”, disse o coronel.
“Vou esclarecer ao coronel que o ambiente é acalorado, democrático, mas que há uma razão pontual: é porque não temos uma política para o meio ambiental no Rio Grande do Sul, não existe política ambiental, existe uma política industrial, tenho dúvidas até se existe um governo legítimo”, afirmou o professor Eduardo Carrion na sua intervenção. Ex-diretor da Faculdade de Direito da Ufrgs, ele observou que a relativização ou diminuição das fronteiras é muito conveniente para os países dominantes e suas empresas, não para países periféricos e com muitas riquezas a proteger, como o Brasil. “Essa PEC não tem sentido”, arrematou, depois de afirmar de que se trata de uma disputa entre “nacionalistas e entreguistas”.
Faixa no Uruguai
Após os depoimentos do botânico Ludwig Buckup e do químico, geneticista e ambientalista Flávio Lewgoy, contrários à redução da fronteira e críticos aos projetos das papeleiras, houve o depoimento da ambientalista uruguaia Maria Selva, representante da Rede Núcleo Amigos da Terra do Uruguai. Ao contrário do Brasil, onde há proposta para diminuição – e há quem peça a extinção – da faixa de fronteira, lá o governo de Tabaré Vasquez apresentou projeto, recentemente, em sentido contrário, criando uma zona de fronteira de 50 quilômetros onde serão proibidas as aquisições de terras por estrangeiros.
“Pode parecer pouco, mas para onde não tem nada já é muito”, disse Maria Selva, esclarecendo que hoje não há nenhuma faixa de fronteira prevista em lei no seu país. Estima-se que hoje 36% do território uruguaio já esteja em mãos estrangeiras, relatou, e somente nos últimos cinco anos 25% das terras produtivas trocaram de mãos, sendo que 75% desse percentual correspondem a pequenos produtores familiares que se desfizeram de suas terras, pressionados pelo agronegócio da soja e papeleiras, principalmente. “A concentração de terras nas mãos do agronegócio e de estrangeiros é um problema muito grave no meu país”, acrescentou.
"O professor Carrion não é mais patriota e não é mais nacionalista que eu", afirmou o senador Sérgio Zambiasi, ao se despedir, antes do encerramento. Ele disse à EcoAgência que é impossível a sua PEC ser votada este ano. Para ser aprovada, teria que ser votada duas vezes no plenário do Senado e bastaria a apresentação de uma emenda para voltar à Comissão de Constituição e Justiça, por onde já passou, começando toda a tramitação novamente. E ainda teria, depois, que ir à Câmara dos Deputados. “Isso é coisa para daqui a cinco ou dez anos”, admitiu. Ele reclamou que até ser aprovada pela CCJ ninguém das entidades presentes no seminário se manifestou sobre a proposta.
Carta das Entidades
Na abertura do Seminário, o recém criado Movimento Gaúcho em Defesa do Meio Ambiente, representando cerca de dez entidades e ONGs, lançou a Carta pela Manutenção da Faixa de Fronteira. Segundo o documento, a legislação atual não impede investimentos estrangeiros, apenas limita a uma mesma nacionalidade a propriedade de aproximadamente 10% da área de um município e 25% aos estrangeiros no total. As entidades afirmam também que as empresas do setor da celulose querem o domínio territorial para a ampliação das monoculturas arbóreas, sem considerar os seus impactos sócio-ambientais.
Para os ambientalistas, o projeto de redução da Faixa de Fronteira favoreceria de forma direta a empresa sueco-finlandesa Stora Enso, que, de acordo com o Ministério Público Federal, já adquiriu terras de forma irregular na região fronteiriça, através de outras empresas nacionais, o que gerou o Inquérito Civil número 158/2005. Além disso, alertam, a região da chamada Faixa de Fronteira Sul-Brasileira compreende grande parte do Bioma Pampa e o Aqüífero Guarani, uma das maiores reservas hídricas do mundo.
(Por Adriane Bertoglio Rodrigues e Ulisses A. Nenê, Eco Agência, 21/07/2008)