Quatro décadas depois do último conflito, descendentes de escravos voltam a ser ameaçados por jagunços
Quase quatro décadas depois do último episódio de violência contra os descendentes de escravos na Comunidade Quilombola do Varzeão, a tensão voltou ao município de Doutor Ulysses, no Vale do Ribeira, divisa do Paraná com São Paulo. Três casas dos quilombolas foram incendiadas na sexta-feira. Os moradores dizem ter sofrido abuso policial e agora ninguém sai da comunidade, onde vivem 56 pessoas numa área de 800 alqueires. A única ação de segurança, segundo eles, foi a colocação de toras de árvores para bloquear a estrada.
O abuso, relatam os quilombolas, teria começado na terça-feira, quando oficiais de Justiça e policiais militares tentaram cumprir um mandado de busca e apreensão de tratores e caminhões, por ordem de um juiz em favor de madeireiros. Segundo a assessoria de imprensa da Polícia Militar, os moradores estariam usando os equipamentos pertencentes aos madeireiros.
No entanto, o presidente da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo do Varzeão, Juventino Rodrigues de Castro, diz que os cinco policiais, os dois oficiais de Justiça e os 12 jagunços usaram de violência mesmo sem resistência dos moradores. “Aqui ninguém tem arma”, afirma. Eles registraram uma ocorrência policial sobre o caso e também comunicaram o Ministério Público.
Na sexta-feira, houve novo conflito quando três casas foram incendiadas. “Deixaram em incompleto a diligência de busca e apreensão, mas deixaram para trás uma cambada de jagunços que arrebentaram as porteiras e tiraram as placas do quilombo”, diz o advogado da comunidade, Pedro Luiz Mariozi. Os quilombolas mais antigos contam que o último conflito havia acontecido ainda em 1970.
O quilombola Laélcio de Souza imaginava que isso fosse coisa do passado, mas conta que desta vez estava em casa com a família quando viu um clarão (no local não há energia elétrica). Ele e o irmão perceberam que quatro pessoas encapuzadas colocavam fogo nas casas. Ele saiu correndo com outras 19 pessoas para se esconder, sem conseguir levar nenhum pertence. “Ficamos das 19 às 22 horas no matagal”, lembra. Ninguém ficou ferido.
O advogado dos quilombolas alega que o mandado era ilegal. Ele explica que ação deve ser autorizada pelo secretário estadual da Segurança Pública, o que não teria ocorrido nesse caso. Hoje representantes da comunidade estarão em Curitiba para medidas judiciais e reuniões com grupos de defesa dos direitos humanos. A Polícia Militar alega que o mandado de busca e apreensão não precisa ser autorizado pelo secretário. A assessoria informa ainda que foi aberta sindicância para apurar o episódio, mas que o cumprimento do mandato aconteceu de forma amigável, com a devolução aos proprietários dos equipamentos que estavam em posse da comunidade.
Segundo o secretário de Assuntos Estratégicos do governo do estado, Nizan Pereira, quem atendia a ocorrência era guarnição policial de Doutor Ulysses. Agora foi designado um capitão para acompanhar o caso. Ele acredita que o conflito será tema da próxima reunião Mãos Limpas, que discute a segurança pública.
A comunidade tem recebido apoio de entidades de defesa dos direitos humanos, como a Pastoral da Terra e o Grupo Clóvis Moura, criado pelo governo para mapear os quilombos no estado e definir as políticas que essas comunidades necessitam. Representantes de várias secretarias, da Polícia Militar, da Sanepar e da Copel integram o grupo que está produzindo um relatório sobre o conflito.
Quem são
Quilombolas são descendentes de escravos ou ocupantes de comunidades remanescentes de quilombos, que hoje lutam pela titulação das terras ocupadas, direito garantido pela Constituição de 1988. Existem mais de 3,5 mil comunidades quilombolas mapeadas no Brasil. No Vale do Ribeira, o conflito se estabelece porque de um lado há os quilombolas, que ocupam a região desde 1854, têm a posse mas não a propriedade da terra. Como a região se tornou atrativa para madeireiros, as terras passaram a ser alvo de disputas entre os dois grupos.
(Gazeta do Povo, 21/07/2008)