Os exemplos descritos como bem-sucedidos de
aproveitamento energético de resíduos urbanos na Alemanha e no Japão despertam entusiasmo e perspectiva de dias melhores nas políticas brasileiras de gestão deste setor. Por outro lado, levantam dúvidas sobre sua possível aplicação à realidade brasileira. Duas questões são relevantes neste cotejo: as características dos resíduos urbanos no Brasil, comparadas às desses países desenvolvidos, e a garantia de uso eficaz das tecnologias de incineração, assim como o monitoramento das mesmas. Todos os anos, tirando os recicláveis – que chamamos "lixo seco" –, a Alemanha converte em energia 17,5 milhões de toneladas de resíduos, mas a maior parte desses resíduos é seco, quase sem frações úmidas. Esta realidade é bem diferente do Brasil, onde o lixo doméstico contém expressiva quantidade de material úmido (orgânico).
Já quanto às tecnologias e controle do uso de incineração, persistem diversos detalhes polêmicos. Os defensores assinalam que a queima de forma inadequada – a céu aberto, incluindo a lenha queimada para consumo humano – é muito pior do que a incineração controlada. "Dois brasileiros que receberam Prêmio Nobel pelo IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas], no ano passado, recomendam a reciclagem energética", afirma o diretor-presidente do Projeto Usina Verde, do Rio de Janeiro, Henrique Saraiva. Segundo ele, um documento da Usina Verde, baseado em dados internacionais e com comentários à Convenção de Estocolmo, de 2001, mostra que a queima indiscriminada do lixo, muito comum à beira de estradas e no interior, é mais nociva do que a queima controlada.
A convenção, ratificada pelo Brasil, relativa ao controle dos Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs), como dioxinas e furanos, que podem ser liberados na queima descontrolada de lixo, mostra que lareiras domésticas praticamente mantiveram em alta a emissão desses poluentes nos Estados Unidos, entre 1987 e 2004, enquanto que o aproveitamento energético controlado reduziu essas emissões para menos de 10%, no mesmo período. Os dados são da Divisão de Planejamento e Padrões de Controle da Qualidade do Ar da Agência Norte-americana de Proteção Ambiental (EPA). Setores como resíduos de saúde e siderúrgicas também diminuíram consideravelmente as emissões de dioxinas e furanos entre 1987 e 2004, conforme a EPA, e o de papel e celulose teve uma pequena queda, de pouco menos de 10 pontos percentuais, comparado aos demais setores avaliados – lareiras de casas, fornos de cimento, siderúrgicas, resíduos de saúde, resíduos domésticos e queimadas em jardins e plantações. Aliás, esta última categoria apresentou uma contribuição preocupante na participação total de emissões de poluentes, especialmente até 1995, quando passou a ter resultados melhores para a saúde pública.
Conforme o anexo C, parte III da Convenção de Estocolmo, são preocupantes, hoje, as queimas de lixo a céu aberto, "(...) incluindo a queima em aterros sanitários, as fontes residenciais de combustão, instalações para queima de madeira e outros combustíveis de biomassa", todas bastante comuns no Brasil.
Saraiva ressalta que a mesma convenção prevê o uso "das melhores técnicas disponíveis e práticas ambientais", o que inclui "a construção e a instalação de unidades de incineração adequadas, o uso de métodos melhorados para limpeza de gases, tais como oxidação térmica ou catalítica, precipitação de pó ou adsorção; o tratamento de resíduos, água residual, dejetos e lodo de esgotos, por tratamento térmico, ou tornando-os inertes, ou detoxificando-os por processos químicos; mudanças de processos que promovam a redução ou eliminação de liberações, tal como a adoção de sistemas fechados; e modificação de projetos de processos", tudo para melhorar a combustão e evitar a formação das substâncias químicas perigosas.
Temperatura Segundo o documento "Health Care Waste Management - To Reduce the Burden of Disease, Health-Care Waste Needs Sound Management, Including Alternatives to Incineration - Fact Sheet No. 281"(Cuidado com a Saúde na Gestão de Residuos...), produzido em 2004 pela Agência Norte-americana de Segurança e Saúde Ocupacional (NIOSH), "mesmo acima de 800ºC", como é realizada a maior parte da incineração de resíduos, "as temperaturas não são uniformes, podendo haver formação de dioxinas e furanos".
Saraiva rebate, porém, que no caso da Usina Verde, a oxidação térmica dos gases é completa e ocorrendo a uma temperatura de cerca de 1000º C, "e com excesso de ar na queima de 110%, o que se reflete na eliminação total do monóxido de carbono [CO]". De acordo com ele, resultados de testes indicam, no máximo, 2 ppm (duas parts por milhão) de CO nos gases emitidos na chaminé. A temperatura do processo, explica, é de, no mínimo, 850ºC, e os gases, na câmara de pós-combustão, são submetidos a uma temperatura de 1000ºC com tempo de residência acima de dois segundos. "As temperaturas são controladas automaticamente", rebate.
ReaçãoPara organizações ambientalistas como o Greenpeace, no entanto, a incineração, mesmo bem controlada, oferece riscos. "As emissões tóxicas, liberadas mesmo pelos incineradores mais modernos, são formadas por três tipos de poluentes perigosos para o ambiente e para a saúde humana: os metais pesados, os produtos de combustão incompleta e as substâncias químicas novas formadas durante o processo de incineração. Nenhum processo de incineração opera com 100% de eficácia. Os metais pesados, como chumbo, cádmio, arsênio, mercúrio e cromo, não são destruídos durante a incineração, e são freqüentemente liberados para o ambiente em formas até mais concentradas e perigosas do que no lixo original.
Equipamentos de controle de poluição podem remover alguns desses metais das emissões, mas mesmo os mais modernos não eliminam com segurança todos eles. No mais, os metais pesados não desaparecem, são transferidos para as cinzas ou para os filtros, que acabam posteriormente sendo aterrados", atesta o documento
"Incineração não é a solução", produzido pela ONG.
Saúde A NIOSH informa que, conforme os parâmetros da Organização Mundial da Saúde (OMS), o limite tolerável de ingestão mensal de dioxinas e furanos é de 70 pictogramas por quilo de peso do indivíduo, o que equivale a 70 trilhonésimos de parte por quilo. De forma geral, pesquisas científicas, e levantamentos comunitários e técnicos associam os impactos da incineração ao aumento das taxas de câncer, a doenças respiratórias, a anomalias reprodutivas (como má formação fetal), a danos neurológicos e a outros efeitos sobre a saúde — em casos de exposições a metais pesados, a organoclorados e a outros poluentes liberados por incineradores.
Já os limites de emissões de dioxinas e furanos variam de 0,1 nanograma de toxicidade equivalente por metro cúbico (TEQ/m3), na Europa, a 5 nanogramas TEQ/m3, no Japão.
Em 1997, de acordo com registros do Greenpeace, a Agência Internacional de Pesquisas do Câncer (IARC) classificou as dioxinas mais tóxicas como cancerígenas para os humanos. "Uma vez emitidas no meio ambiente, essas substâncias podem viajar longas distâncias pelo ar e pelas correntes oceânicas, tornando-se uma contaminação global.
As dioxinas liberadas pelos incineradores também podem acumular-se em animais ruminantes e peixes, por meio da cadeia alimentar. São diversos os casos relatados mundialmente em que produtos como leite, ovos e carne continham níveis de dioxina acima dos permitidos legalmente", descreve o documento "Incineração não é a solução".
Contraponto Saraiva, contudo, lembra que a forte reação das ONGs contrárias às usinas de incineração, na Europa, nos anos 80, resultou na adoção de legislações rigorosas para as emanações de gases deste processo. Isto ocorreu também no Japão e nos Estados Unidos. Desta forma, muitas usinas foram fechadas e novos investimentos realizados para o estabelecimento de unidades consideradas mais seguras. "Somente nos Estados Unidos, mais de US$ 1 bilhão foram investidos na adequação de usinas", nota.
Hoje, mais de 130 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos são tratados por ano em cerca de 650 unidades de incineração com geração de energia implantadas em mais de 35 países.
Em nível mundial, a queima de resíduos em incineradores tem cada vez mais adeptos. O Japão é recordista, com 190 instalações. Em seguida, vem a França, com 130. Os Estados Unidos têm 89 unidades. A Alemanha conta com 58, Itália, 44; Dinamarca, 30; Suíça, 29; Suécia, 26; Bélgica, 20; Coréia do Sul, 19; Reino Unido, 14; Holanda, 12; Noruega, 11; Espanha, 9; China, 7; Áustria e Cingapura, 4 cada um.
No Brasil, a
Resolução Conama 316/2002 estabelece procedimentos e critérios para o funcionamento de sistemas térmicos de tratamento de resíduos, a qual vem sendo sistematicamente criticada por ambientalistas, que alegam ser os limites de emissões de dioxinas e furanos decorrentes desses processos "superiores aos permitidos em países europeus e nos Estados Unidos".
(Por Cláudia Viegas, Ambiente JÁ, 17/07/2008)