As mudanças climáticas globais são inequívocas, estão se acelerando e são irreversíveis. Elas impactam regiões que estão todas interconectadas, havendo sérios riscos sistêmicos. Os desafios que elas trazem não podem ser separados da questão do desenvolvimento. Os impactos das mudanças climáticas são extremamente desiguais e injustos, afetando desproporcionalmente os países mais pobres. O planeta vivo se encontra num estado sem análogos no passado, pelo menos desde que os primatas desceram das árvores das florestas equatoriais da África para dar origem ao que somos.
Foram estes os cinco pontos que pautaram a conferência de Carlos Afonso Nobre, considerado o maior especialista em mudanças climáticas do país, durante a 60ª Reunião da SBPC. “Tenho usado muito uma definição do professor Paulo Crutzen [Nobel de Química] para esta nova era, que ele chama de Antropoceno. Refere-se a 200 anos da história recente, o que é nada na escala do tempo, mas em que o homem impôs transformações de uma magnitude que somente eras geológicas poderiam produzir. O Antropoceno é a era em que nós, Homo sapiens, dominamos completamente o planeta”.
Carlos Nobre é pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos criadores do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (Cptec) e membro do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), organização que ganhou o Nobel da Paz. Em sua palestra desta terça-feira (15/07), ele usou todo o seu conhecimento da interação entre atmosfera e biosfera, de forma didática, para demonstrar que o aquecimento do planeta é um problema irreversível.
A questão, segundo o especialista, é o quanto de aquecimento. “Isto vai depender das nossas escolhas. Se estabilizarmos as emissões de todos os gases ao equivalente a 600 partes por milhão de CO2, o planeta vai aquecer um pouco mais de 2 graus até 2100. Se não estabilizarmos, poderá ser qualquer valor. Talvez seja esta a maior e a uma das mais difíceis escolhas que a sociedade global tenha de fazer. O debate sobre como conciliar nossa necessidade de desenvolvimento com a sustentabilidade ambiental está todos os dias na mídia, com pouquíssimo avanço”.
O cientista citou Rachel Carson, de "Primavera Silenciosa", livro de 1963 que se tornou simbólico do movimento ambientalista e no qual a autora comparava o caminho escolhido pela sociedade ocidental para o progresso material a uma rodovia bem pavimentada e suave – e por isso perigosa, que oferecia risco de acidentes. “Como ela dizia, devemos começar a trilhar um caminho menos trilhado, que passa por uma desapropriação dos recursos naturais, com o seu uso mais sábio. Uma necessidade inescapável é o surgimento do Homo planetaris, dotado de uma ética planetária”.
Sem volta
Ressalvando que ocorreram muitas outras transformações globais, embora trate quase que exclusivamente das mudanças climáticas, Carlos Nobre começa acusando o desaparecimento de espécies da biodiversidade a uma taxa 10.000 vezes superior ao da evolução natural. “Também estamos perturbando, por exemplo, o ciclo do nitrogênio, que é produzido pelas atividades agrícolas e industriais em volume muito maior que o da sua fixação natural”.
Através de gráficos produzidos com dados do IPCC, o pesquisador mostrou as concentrações atmosféricas causadoras do efeito estufa no período de 10.000 anos, com enorme magnitude nos últimos 200 anos. “Mesmo que alguns cientistas ainda se mostrem incrédulos, é inequívoco que o aquecimento se deve às atividades humanas e não à emissão natural por processos geológicos. É conseqüência da apropriação cada vez maior de energia, alimentos, matérias-primas e do crescimento populacional. É o que a vida moderna tem feito”.
Outro gráfico, reunindo 150 anos de dados, aponta o acentuado aumento do aquecimento nas últimas quatro décadas. “Em setembro do ano passado, George Bush admitiu pela primeira vez a importância de reduzir a emissão de gases, mas sem prejuízo do crescimento econômico. Ainda se acha que podemos encontrar soluções tecnológicas. Pessoalmente, penso que a tecnologia poderia ter resolvido o problema se houvesse esta percepção no pós-guerra. Agora, ela é importante para diminuir o risco futuro, já passamos o ponto da irreversibilidade”.
Inércias
Para justificar porque considera o processo irreversível, Carlos Nobre explica sobre as inércias do sistema climático, a primeira delas referente aos gases que provocam o efeito estufa adicional (de origem humana). “O gás carbônico que produzimos permanece na atmosfera por 100 ou até 1.000 anos, ou seja, vai continuar aquecendo a superfície por séculos. A melhor maneira de retirá-lo da atmosfera é a fotossíntese (crescimento de plantas), mas alguns cálculos indicam que gastaríamos, hoje, cerca de dez vezes o PIB mundial. É impraticável”.
Uma segunda inércia, segundo o pesquisador, está nos oceanos, que já se mostram 0,6º mais quentes no nível superior e, devido a esta expansão térmica, subiram 17 centímetros durante o século 20. “Nos primeiros cem ou duzentos metros, o oceano leva até 30 anos para equilibrar o aquecimento; no oceano profundo, são 600 anos. Isto significa que o nível do mar continuará subindo por séculos. Este ajuste lento dos oceanos é outra garantia de que o aquecimento persistirá, mesmo se zerarmos as emissões”.
A terceira inércia apontada por Carlos Nobre é a institucional. Mesmo que as mudanças climáticas representem um desafio sem precedentes para a civilização – e apesar do amplo debate e dos protocolos –, as emissões que cresciam 1,3% ao ano na década de 1990, agora crescem 3,3% ao ano. “Estamos muito longe de ter qualquer controle sobre o processo de emissões, indo totalmente na contramão. Este é o grande debate que precisamos promover”.
Cenário traçado
Com tamanha inércia, o cientista acrescenta que o cenário já está traçado para os próximos 20 ou 30 anos. “O planeta vai continuar aquecendo numa taxa de 0,2ºC por década e no Brasil, portanto, a temperatura subirá de 0,5ºC a 1ºC nesse futuro próximo. Havendo estabilização das emissões, o aumento será de 2ºC ou 2,5ºC até o final do século. Num cenário sem controle, a temperatura subirá 4ºC, 5ºC, 6ºC, e continuará subindo. São estas as diferenças que ainda estão em nossas mãos”.
Nobre atenta que o Brasil é um país muito vulnerável a mudanças climáticas, principalmente os estratos mais pobres da sociedade. “Uma das conclusões mais importantes do IPCC do ano passado, é de que num mundo desigual, as mudanças climáticas irão aumentar ainda mais as desigualdades. Trata-se de uma grave questão ética, pois os países que menos contribuíram para o aquecimento, com os da África e do sul da Ásia, são os que pagarão o maior preço. Por um capricho da natureza, serão mais atingidas as regiões áridas e semi-áridas, inclusive do nordeste brasileiro”.
Catastrofista? Certamente, Carlos Nobre já sofreu esta acusação por parte dos céticos em relação às projeções do IPCC, mas é ele quem vê um cenário mais otimista para o Brasil, que tem as melhores condições, entre todos os países, para se tornar uma potência ambiental. “Prefiro falar em ‘primeiro país tropical desenvolvido’. Com todos os recursos naturais de que dispomos, podemos inventar os meios de desenvolver o país de modo sustentável e ser o modelo para os trópicos. Mas temos que querer”.
(Por Luiz Sugimoto, Jornal da Unicamp, 15/07/2008)