Usina Fortaleza Açúcar e Álcool, situada no município de Porteirão (GO), mantinha 244 homens na lavoura de cana em situação de trabalho degradante. Descaso com saúde e segurança foram os principais motivos do resgate
Uma operação da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás (SRTE-GO) encontrou 244 trabalhadores em condições degradantes na Usina Fortaleza Açúcar e Álcool Ltda, em Porteirão (GO), no sul do estado. Além dos alojamentos precários, a fiscalização flagrou cortadores de cana-de-açúcar trabalhando sem condições de segurança e com alimentação de péssima qualidade, gerenciada por terceiros. Um dos principais problemas encontrados pelos fiscais foi a inadequação dos equipamentos de proteção individuais (EPIs) utilizados pelos trabalhadores na lavoura.
Além das rescisões, que somaram mais R$ 350 mil, a usina poderá ser obrigada a desembolsar mais de R$ 2 milhões em uma ação que será ajuizada por danos morais coletivos e outros R$ 3 ou 5 milhões pelos 102 autos de infração lavrados pela fiscalização. “Será uma medida exemplar”, destaca o procurador do Trabalho Januário Justino Ferreira. Por conta da situação encontrada, ele nem propôs a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), partindo logo para uma ação civil pública contra a usina.
O procurador garantiu que também vai entrar com uma representação-crime contra os "gatos" - contratadores de mão-de-obra - e contra a diretoria da empresa. Segundo Januário, apesar de gerir cerca de 900 empregados, a Usina Fortaleza deixava na mão dos intermediários a administração dos trabalhadores que foram resgatados. A empresa assinava a carteira de trabalho, mas quem “cuidava” de fato da admissão, hospedagem, alimentação, transporte e até demissão dos cortadores de cana eram os "gatos", também responsáveis pelo aliciamento das pessoas na Região Nordeste. A maioria dos 244 resgatados na usina viera do Maranhão.
“Essa empresa desrespeitou todos os direitos desses trabalhadores. Fazia vista grossa e permitia que gatos gerenciassem com mão de ferro os trabalhadores. A falta de segurança e o pouco caso com a saúde foram os problemas mais graves. Havia muitos acidentes de trabalho e esses homens estavam completamente desassistidos. Vou investigar até os médicos da região, pois acredito que agiam junto com as empresas, que se omitiam. Muitas vezes o trabalhador da usina chegava no médico com um corte profundo no braço, na mão, na perna e ele dava um atestado de cinco dias e não registrava a CAT [Comunicação de Acidente de Trabalho]”, conta o procurador.
Só no último mês, dois jovens de 22 anos morreram na usina. Um deles teve a vida subtraída ainda durante a fiscalização do grupo móvel. O acidente aconteceu numa madrugada com uma colheitadeira. Uma das roldanas enroscou na camisa do trabalhor e o atirou para dentro da máquina. O jovem, que não teve o nome divulgado, não resistiu e morreu no hospital da cidade. O outro acidente aconteceu durante a manutenção de uma caldeira. Sem EPIs, o funcionário caiu de uma altura de oito metros e também não resistiu. Segundo o auditor fiscal do Trabalho que coordenou a ação da SRTE-GO, Welton Oliveira, a empresa será responsabilizada pelas mortes.
Regras impostas pela Previdência Social são comumente burladas por empresas para “desviar” a atenção dos fiscais sobre suas atividades. Muitas vezes, as Comunicações de Acidente de Trabalho (CATs), que são obrigatórias em todo e qualquer caso de acidente ou doença de trabalho, não são emitidas. Esse registro é essencial para que o trabalhador possa receber os benefícios a que tem direito. Outra garantia que está vinculada à CAT é a estabilidade do funcionário por um ano após o retorno ao trabalho, norma que geralmente não interessa ao empregador.
“Eles não pensam na saúde do trabalhador. Tudo é válido para enganar e retardar a fiscalização. Além disso, uma empresa com esse tanto de funcionários deveria ter no mínimo um médico do trabalho, uma enfermeira, um engenheiro do trabalho, dois técnicos agrícolas e um auxiliar de enfermagem. Seis profissionais para cuidar minimamente da saúde de seus trabalhadores. Ela substituiu por um. A empresa tinha um técnico agrícola para fazer o trabalho todo. Isso caracteriza um extremo descaso com a segurança e saúde”, critica o auditor fiscal Welton Oliveira.
Na tentativa de impedir a continuidade de violações, o procurador Januário enumerou algumas obrigações que devem constar da ação civil pública: o uso de aliciadores na contratação de mão-de-obra e a administração dos funcionários por terceiros serão vetados; e empresa será obrigada a assumir a hospedagem, a alimentação e o transporte. A usina terá ainda que se adequar às normas de segurança e medicina do trabalho e passar a expedir as CATs, além de prestar toda assistência necessária aos trabalhadores em momentos de acidentes e fornecer EPIs adequados.
Para o gerente administrativo da Fortaleza Açúcar e Álcool, Luiz Antônio Vanim, a ação terminou “de forma satisfatória para todos”, mesmo com tantas exigências. O gerente discorda, porém, quanto ao resgate por trabalho degradante. Para ele, os alojamentos em situações precárias, a falta de EPIs e os acidentes de trabalho não passam de uma questão de ponto de vista. “Essa parte está superada, a ação terminou de forma conciliatória para ambos os lados. Já não temos mais aqui esses trabalhadores que eles [a fiscalização] consideravam estar em condições degradantes. Resolvemos atender as exigências e tudo acabou bem. Mas o ato de cortar cana é igual em todo lugar. No entendimento dos fiscais não era adequado, mas para mim é tudo uma questão de visualização. Numa situação dessas, o que os resta fazer é atender as determinações, certo?”, pondera o representante da empresa.
Luiz Antônio também nega que os trabalhadores ocupassem os alojamentos inadequados por imposição da empresa ou do "gato". Segundo ele, “era conveniente” para os cortadores de cana, “pois muitos queriam ficar perto da cidade”. “A gente não podia obrigá-los a ficar em nossos alojamentos. Mas agora não vamos contratar mais ninguém que não queira morar nos alojamentos da empresa. Não podemos arcar mais com isso”, responde o gerente da usina, numa tentativa de se eximir da responsabilidade.
De acordo com o auditor fiscal Welton, essa não é a primeira fiscalização da empresa. No ano passado a usina recebeu uma visita do grupo móvel, mas não foram encontrados trabalhadores na ocasião. Os fiscais deixaram apenas páginas e páginas de recomendações que precisavam ser seguidas. “Eles não cumpriram nenhuma. Acho que 90% do que foi recomendado foi autuado esse ano”, afirma Welton, que lavrou os 102 autos de infração.
A operação começou no dia 13 de junho e só acabou no dia 10 de julho - quase um mês depois. Apesar de a empresa ter acatado todas as exigências, a demora no pagamento das rescisões aconteceu porque a empresa - que possui escritório central em Campinas (SP) - não possuía a relação dos trabalhadores que haviam sido contratados, em sua maioria, em janeiro deste ano. Na última quarta-feira (9), o grupo derradeiro de 21 trabalhadores recebeu verba indenizatória e foi encaminhado de volta às cidades de origem.
(Por Christiane Peres,
Repórter Brasil, 15/07/2008)