Em um de seus primeiros discursos, quando começou o protesto rural, a presidente Cristina Kirchner disse ser “contra a luta de classes”. Expressou isso como uma espécie de princípio doutrinário irrenunciável. Conforme vemos hoje na Argentina, estando a favor ou contra ela, a luta de classes existe. A ilusão de um subdesenvolvimento capitalista próspero com inclusão dos "de baixo" enfrenta um choque de realidade.
BUENOS AIRES - Em meados de junho o enfrentamento entre o governo e as associações patronais do campo parecia ter chegado a um ponto de ruptura total, mas não foi assim e poucos dias depois as águas acalmaram. A presidente decidira transferir para o Parlamento a decisão final sobre os impostos à exportação de produtos agrícolas: era o que esperavam os empresários rurais para levantar seu lockout, que começava a desgastar-se rapidamente, assim como a popularidade do governo. Foi o fim provisório de mais de cem dias de enfrentamento após os quais, como dizem agora alguns analistas políticos, “a Argentina já não é a mesma”.
A imagem da presidenta havia chegado a um nível de deterioração somente comparável com o do ex-presidente de la Rúa em dezembro de 2001 e suas convocatórias para uma mobilização de apoio ao governo tinham exaltado as classes altas e setores crescentes das classes médias contra seu governo. Por sua vez, os ruralistas tinham estendido sua influência, agrupando junto a eles o conjunto da oposição de direita e vastos setores das classes médias rurais e urbanas; neste último caso, inclusive grupos médios-baixos afetados por um processo inflacionário que ao longo dos últimos meses fez cair seu nível de vida. Contudo, a radicalização levava-os a um beco sem saída, especialmente no caso da pequena burguesia agrária próspera, uma espécie de “novos ricos” furiosos diante das cargas tributárias que frustravam suas expectativas de ganhos abundantes e ascendentes.
A intransigência extremista que alcançaram em suas exigências era, de fato, uma convocatória ao golpe de estado, e no passado, talvez, seu desejo teria podido materializar-se. Mas agora, um quarto de século após o fim da última ditadura militar, a capacidade de intervenção das Forças Armadas é praticamente nula, sua degradação institucional e a lápide moral que pesa sobre elas —chamada genocídio— torna impraticável essa possibilidade.
A outra alternativa golpista era a de um grupelho de direita (uma espécie de 2001 às avessas) amplificada pela mídia e, finalmente, manipulada por um setor do sistema institucional (judiciário, parlamentar nacional, governos provinciais, etc.). Mas os dirigentes das direitas —política e rural— não estavam dispostos a tentar semelhante aventura, em primeiro lugar, porque o atual governo, para além de sua imagem progressista, tem respeitado integralmente o sistema neoliberal dominante herdado dos anos 1990 e, conseqüentemente, núcleos decisivos do poder econômico não apoiariam de modo algum a derrubada da presidenta.
Em segundo lugar, porque esse fato teria aberto uma espécie de caixa de Pandora, uma desordem geral que, unida à mais do que provável queda das classes populares, encurraladas pelo aumento dos preços dos alimentos, poderia ter gerado uma avalanche muito ampla de protestos sociais. E, finalmente, porque por volta de meados de junho, apesar da persistente agitação da mídia, a popularidade da direita mostrava sérios sinais de deterioração: o aumento dos preços e a ameaça de desabastecimento começavam a produzir reações hostis de importantes setores das classes médias e baixas com respeito aos ruralistas. As associações tradicionais da burguesia latifundiária, como a Sociedade Rural, que ao longo do conflito tinham mantido um perfil relativamente moderado, pressionaram com força para desacelerar o protesto.
Os novos ricos do mundo agrário (pequenos e médios rentistas e agricultores) foram, de fato, a massa de manobras do bando dos agronegócios. Acreditaram-se sujeitos de uma espécie de cruzada gaucha contra o “estado-ladrão” que queria cobrar-lhes tributos extraordinários. Por baixo das fitinhas e bandeiras pátrias movimentava-se, instigada pelas classes altas, uma classe média agrária mesquinha, que pretendia apropriar-se de uma parte substancial do butim de superlucros do negócio exportador.
Contudo, seria um grande erro limitar o fenômeno a esse aspecto socioeconômico: o setor civil mobilizado contra o governo foi muito mais amplo, estendeu-se às cidades e adquiriu força nos grandes conglomerados urbanos, incorporando importantes setores médios, a maior parte deles sem vínculos materiais diretos com o mundo agrário.
É verdade que nos bairros acomodados de Buenos Aires, por exemplo, a vanguarda dos panelaços foram as “panelas de teflon” empunhadas por ricos acompanhados por saudosistas da última ditadura militar, mas o movimento estendeu-se para as zonas de classe média e a simpatia que despertaram em setores importantes da classe média urbana foi visível.
A desestabilização governamental
As mobilizações promovidas pelo governo foram realizadas graças ao grande aparato dedicado a isso. O clima entre os trabalhadores foi de apatia ou indiferença e, em certos casos, de rejeição, não muito entusiástica, à direita; o ativismo pró-governamental, às vezes autoqualificado como “antioligárquico”, foi claramente minoritário.
Um fator decisivo do crescimento da oposição nas camadas médias e do afastamento do oficialismo nas classes baixas (onde a presidenta fez sua melhor colheita de votos em 2007) é a inflação, que tem causado rápida deterioração da renda real dos assalariados.
Atualmente, a direita política e sua cobertura empresárial apontam a inflação como o inimigo principal a ser combatido e, para isso, voltam a levantar as tradicionais receitas neoliberais centradas no chamado “desaquecimento da economia”, alcançado por meio da redução do gasto público e de frear os aumentos de salários. O resultado seria um rápido aumento do desemprego, a precarização laboral e a redução da demanda das classes baixas, mas não dos benefícios empresariais, que seriam mantidos, ou aumentariam, graças à diminuição dos custos salariais reais.
Com menos gastos, o Estado poderia preservar o superávit fiscal sem necessidade de aumentar os impostos, o que, obviamente, beneficiaria empresários e classes altas em geral. E aí pára a ofensiva liberal, porque, segundo eles, o Estado deveria continuar intervindo no mercado de câmbio, acumulando dólares e mantendo, assim, um dólar artificialmente muito alto, o que permitiria manter, ou até aumentar, os altos lucros em pesos dos exportadores industriais e agropecuários. Neste esquema econômico, a governabilidade poderia ser mantida somente com doses crescentes de repressão social e com a consolidação do bloco reacionário (classes altas e médias) tal como tem se configurado nos últimos meses.
Mas ambas as condições são muito difíceis de obter: as bases populares mudaram muito desde a década passada e a experiência de 2001-2002 marca um ponto de inflexão quase irreversível. Se a opção neoliberal for imposta, a generalização e radicalização dos protestos populares configuraria um panorama de alta turbulência, ao qual, certamente, iriam aderir setores médios que, afetados pela concentração de renda, abandonariam seus delírios elitistas para voltar a ver “os de baixo” com simpatia.
Por su vez, o governo tenta, há pouco mais de um ano, enfrentar a inflação com medidas pontuais que não conseguem frear o processo. Da ocultação da realidade manipulando as estatísticas até os acordos de preços setoriais, passando por todo tipo de negociações com grupos empresariais e burocracias sindicais, foi armado um complicado jogo destinado afastar o clima inflacionário preservando a aliança social e midiática que foi a base da governabilidade desde 2003.
O governo temia que essa aliança fosse quebrada desde baixo, desde o espaço dos trabalhadores, devido à persistente degradação dos salários reais; mas ela quebrou por cima, desde o mundo dos agronegócios, das camadas sociais mais beneficiadas pela estratégia econômica kirchnerista, desatando uma onda reacionária cuja magnitude e radicalismo surpreendeu a todos: o governo, é claro, mas também seus instigadores diretos, os dirigentes empresariais rurais.
A aplicação de impostos ou retenções variáveis às exportações agrícolas, que apontam principalmente para as vendas externas de soja, não constituem uma medida fiscal —dado que o Estado dispõe de uma ampla variedade de fontes tributárias alternativas e conta com um superávit fiscal considerável— seu objetivo real é o sistema de preços, a inflação empurrada pela repercussão interna do aumento internacional dos preços dos produtos agrícolas. Mediu muito mal as possíveis repercussões da medida, mas quem foi que mediu bem? Nem os dirigentes patronais agrários, nem os meios de comunicação que os apóiam, suspeitavam da onda de protestos que viria e, muito menos, da rápida formação de uma massa social reacionária cujo volume e dinamismo não têm precedentes no último meio século. Para encontrar algo parecido precisaríamos voltar a 1955, quando um enorme bloco de classes médias e altas apoiou (promoveu) o golpe militar antiperonista, nessa época, como agora, salpicado por surtos racistas contra os pobres.
Inflação, capitalismo realmente existente e agronegócios
O processo inflacionário não é resultado de um suposto “aquecimento” econômico, mas de uma combinação de fatores internos e externos cuja convergência supera tanto o oficialismo quanto sua oposição de direita.
Visto do ângulo dos custos produtivos, a inflação internacional fez subir os preços de uma ampla variedade de insumos importados e essa tendência foi reforçada pela política de dólar alto em benefício dos exportadores.
Mas um fator decisivo tem sido a corrida entre salários e benefícios fiscais concedidos aos empresários. Tomando como base as estatísticas oficiais, os salários reais caíram, em média, 30% em 2002 e começaram a recuperação no ano seguinte. Por volta de 2007 já estavam quase no nível de 2001, antes da debacle, mas ainda eram inferiores aos de meados dos anos 1990.
Precisamos levar em consideração tendências de longo prazo, como as do crescimento da taxa de desemprego e da concentração de renda, que foram avançando lentamente a partir de meados dos anos 1950 em um movimento ziguezagueante, expressão da queda-de-braço entre os sindicatos e as empresas. O golpe militar de 1976 acelerou a marcha, que adquiriu maior velocidade nos anos 1990. Em 2001-2002 veio a queda dos salários e do gasto público em termos reais, mas desde 2003 a recomposição econômica trouxe um gradual aumento da taxa de emprego, que cresceu em torno de 20% entre 2003 e o primeiro trimestre de 2007, dos salários reais (cresceram pouco mais de 30% no mesmo período) e da participação dos trabalhadores na Renda Nacional: 23% em 2003 e 28% no início de 2007, embora ainda inferior à de 2001, próxima aos 31%, tudo isto seguindo as estatísticas oficiais (1).
É muito provável que essas estatísticas exagerem os números positivos e, além disso, a recomposição salarial foi muito desigual; contudo, é evidente que entre 2003 e 2006, o período de gloria do kirchnerismo, as três variáveis mencionadas acima cresceram. Diante disso, o conjunto da classe capitalista aproveitou, em uma primeira etapa, os baixos salários reais para acumular benefícios, festejando a expansão geral da demanda interna. Mas quando, entre o fim de 2006 e o início de 2007, os salários reais começaram a aproximar-se dos níveis de 2001 os empresários reagiram tentando reverter a situação; comerciantes, industriais, produtores agropecuários, etc., foram aumentando os preços de seus produtos. Do seu ponto de vista, os aumentos nos preços de insumos e salários estavam comprimindo margens de lucros até níveis “inaceitáveis”. Para eles, 2001-2002 (igual que 1976) era um marco histórico irreversível.
A primeira onda inflacionária foi suave e pôde ser absorvida pelo conjunto da população (incluídos os assalariados) e as relativamente pequenas retrações iniciais da demanda nas classes baixas foram mais do que compensadas por aumentos paralelos na demanda das classes mais altas. Mais adiante, a reconcentração de renda (paralela às perdas dos salários reais) impulsionou com maior força o fenômeno de “inflação de demanda”, proveniente dos setores médios-superiores e altos.
O empurrão final foi dado pela aceleração do aumento dos preços internacionais dos produtos agrícolas, repercutindo sobre o sistema interno de preços (e sobre as expectativas de superbenefícios das classes altas e médias do mundo rural).
Como já disse, o governo, cujo negócio principal é a “governabilidade”, mãe do poder político e de todos os negócios oficiais, reagiu tentando impor retenções fiscais variáveis às exportações agrícolas, partindo da base de que suas cotações futuras, em um horizonte previsível, serão cada vez mais altas. Foi, ao mesmo tempo, uma medida defensiva e preventiva, que provocou a sublevação já conhecida, que, por sua vez, acelerou o processo inflacionário.
Em um de seus primeiros discursos, quando começou o protesto rural, a presidenta disse ser “contra a luta de classes”. Expressou isso como uma espécie de “princípio doutrinário” irrenunciável; conforme estamos vendo, estando a favor ou contra ela, a luta de classes existe. O fundador de seu movimento costumava repetir, há várias décadas, uma e outra vez, que “a única verdade é a realidade”. Fica aberto o debate sobre se era ou não um princípio doutrinário, ou sobre o significado filosófico do conceito de “realidade”, etc., mas não se pode negar que era um chamado à sensatez e à dessacralização de fantasias irracionais. Por exemplo, (se nos situarmos na Argentina atual) a ilusão sobre um capitalismo harmônico, estável, mesmo que subdesenvolvido, e crescentemente dominado pelos agronegócios (imersos em uma avalanche de superlucros especulativos) e no meio de uma formidável crise global.
A longa marcha do parasitismo financeiro
Os agronegócios aparecem hoje como a cabeça, a área mais próspera do capitalismo argentino. A agressividade de suas hostes, seu tom autoritário, tem levado diversos grupos e comunicadores pró-governo a qualificarem o fenômeno como “renascimento oligárquico”, resultado da “reprimarização econômica”, retorno ao velho sistema agroexportador sobre o qual a aristocracia latifundiária colonial assentou seu poder há pouco mais de um século, substituído, depois, pela industrialização e o primeiro peronismo.
Essa imagem oculta o caráter claramente “financeiro” dos agronegócios e, como conseqüência, que pertence ao movimento global de financierização, ascendente há quatro décadas e que acabou estabelecendo sua hegemonia sobre a economia mundial. A massa total de fundos que circulam em suas redes especulativas está próxima à casa dos mil bilhões de dólares (equivalente a quase 16 vezes o Produto Bruto Mundial), apenas os negócios com os chamados “produtos financeiros derivados”, registrados pelo Banco da Basiléia, rondam os 600 bilhões de dólares. Esta hipertrofia parasitária impôs seu selo subcultural às mais variadas atividades produtivas, tanto nos países centrais como nos periféricos, e é uma das causas decisivas da inflação internacional (cujo pilar fundamental é, obviamente, a explosão do preço do petróleo), além da principal fonte nutrícia da depredação ambiental planetária.
Essa tendência, expressão de decadência civilizacional, capturou as sociedades latino-americanas há muito tempo. O início do declínio da economia argentina geralmente é estabelecido na segunda metade dos anos 1970, durante a ditadura militar, quando emergiu dominante o setor financeiro, como cabeça de um sistema mais vasto de atividades especulativas que foi deixando em segundo plano os setores produtivos, principalmente a indústria. Entre 1976 e 1981 o setor industrial cresceu apenas 2% em termos reais, enquanto o financeiro cresceu quase 150% (2).
Na Argentina, o nascimento da hegemonia financeira, que desde o começo assumiu formas mafiosas, apareceu como resultado do esgotamento e a decomposição do processo de industrialização (subdesenvolvida), evidente desde o final dos anos 1960, cuja mais alta expressão política foi o primeiro governo peronista (1945-55). Esse processo nunca havia conseguido superar o velho esquema agroexportador, com o qual coexistiu de maneira instável e confusa: para funcionar, dependia das divisas das exportações provenientes do setor rural, o que determinava uma debilidade estratégica fundamental em sua inserção internacional. Isto continuou até meados dos anos 1970, no contexto de uma interminável sucessão de golpes e contragolpes de Estado e associações intersetoriais das quais participavam as transnacionais que iam ocupando posições, os credores externos, os industriais mais ou menos "nacionais", os interesses da alta burguesia rural e comercial, os sindicatos, etc., em uma espécie de eterno "empate" em que nenhum setor conseguia prevalecer de maneira durável.
De fato, ia ocorrendo, pouco a pouco, a recolonização do aparato econômico argentino (através da dívida externa, dos investimentos estrangeiros, do enfraquecimento comercial) ao mesmo tempo em que a renda se concentrava e o Estado ia degradando-se. Este retrocesso geral debilitava, quebrava, uma após outra, as zonas de proteção econômicas, institucionais e sociais, transformando o capitalismo local em seu conjunto.
A ditadura instalada em 1976 produziu uma mudança qualitativa, marcada pela avalanche especulativa, a redução salarial e a abertura à importação selvagem, coincidente, na especificidade periférica argentina, com o processo global de dominação financeira.
A predominância dos agronegócios deve ser vista, portanto, como o resultando (a mais recente degeneração socioeconômica nacional) desse movimento externo-interno. A dinâmica do mundo rural argentino de hoje é inexplicável sem a introdução de termos como “pool de plantio”, “fundo fiduciário” ou “rentista rural”. Por outro lado, o auge do setor é produto do aumento acelerado dos preços internacionais dos produtos agrícolas: componente da crise mundial do capitalismo, resultado do esgotamento tecnológico da modernização agrícola transformada em mega depredadora de recursos naturais, geradora de fome em vastas zonas subdesenvolvidas, desestabilizadora de economias centrais e periféricas.
De qualquer maneira, a “cultura financeira” dos centros dinâmicos do sistema rural argentino não implica a presença de uma “nova burguesia” apagando completamente as velhas raízes oligárquicas. O processo histórico tem sido mais complexo, as antigas classes dominantes agrárias foram modificando-se nas últimas décadas, sobretudo desde os anos 1990, alguns setores desaparecendo do cenário, outros adaptando-se com dificuldade e, finalmente, os ganhadores incorporando-se de maneira plena aos novos tempos, associando-se com os recém chegados, geralmente especuladores, estruturas financeiras locais e transnacionais (em muitos casos é quase impossível diferenciar estas duas últimas categorias).
Hoje, quando observamos a elite dirigente da economia agrária, encontramos velhos sobrenomes da aristocracia rural combinados com personagens surgidos dos negócios rápidos da era neoliberal, grupos financeiros globais, etc. Neste processo de “financeirização” entraram amplas camadas da classe média agrária, como sócias dos novos empreendimentos ou como rentistas.
Por outro lado, não deveríamos opor de maneira esquemática os novos comportamentos à antiga cultura “oligárquica”, muitas vezes apontada erroneamente como “pouco-capitalista”, “atrasada” do ponto de vista do desenvolvimento burguês. Desde suas origens no século XIX, a elite dos pampas esteve impregnada de uma grande dinâmica comercial-financeira, seu caráter colonial deu-lhe uma identidade “internacional” (pró-européia), diversificou seus negócios na área urbana, onde geralmente residia, etc.
Conseqüentemente, sua última mutação em direção aos agronegócios de alta tecnologia não significou entrar em um mundo totalmente novo, mas o salto qualitativo de processos recentes e também de outros muito longínquos no tempo.
Crise de governabilidade
A economia mundial, com seu centro nos Estados Unidos, está entrando em uma situação caracterizada pela combinação de inflação e desaceleração produtiva. A desordem inflacionária global chegou para ficar, com certeza, durante muito tempo, alimentada pela hipertrofia financeira, empurrada pelo aumento incessante dos preços do petróleo, dos alimentos e das commodities em geral.
Os agronegócios atuais são, entre outras coisas, “negócios inflacionários”, impulsionados por (e impulsionando) corridas especulativas internacionais (e intranacionais), jogadas ardilosas e operações de curto prazo em busca de superlucros, acumulações velozes de liqüidez destinada a ser reinvestida nesse setor ou em outros. A depredação de tudo o que cruza em seu caminho (recursos naturais, estruturas sociais, etc.) é um componente essencial de seu comportamento. No caso específico argentino, é possível afirmar que o clima cultural que prevalecia no início desta década (bem adubado pelo período menemista) estava perfeitamente preparado para essa avalanche capitalista global. O governo dos Kirchner, agora vítima do fenômeno, alentou-o desde sua chegada, porque considerou que era um fator decisivo da “prosperidade econômica” que garantia a estabilidade institucional.
Os recordes de exportações agrícolas (ou seja, a ascensão triunfal dos agronegócios) eram apresentados pelo oficialismo como exemplo de sucesso empresarial da nova Argentina, onde a acumulação de reservas dolarizadas, as altas taxas de crescimento do PIB e o enriquecimento dos poderosos costumavam estar associados à integração social, recuperação de salários e empregos e consolidação da convivência republicana.
Pelo visto, o “progressismo” tinha, finalmente, encontrado a fórmula da quadratura do círculo: subdesenvolvimento capitalista próspero com inclusão dos “de baixo” e democracia representativa. Mas a festa durou menos de meia década, os agronegócios foram acumulando poder econômico, midiático e político e no primeiro semestre de 2008 já estavam em condições de expor seu poderio e avançar para uma superconcentração de renda.
Ao fazer isso deterioraram gravemente não só a governabilidade progressista, mas a governabilidade em geral: a inflação descontrolada e a irrupção de uma massa social reacionária muito agressiva e estendida, com claros surtos protofascistas, pôs em evidência a fraqueza do regime político e sua legitimidade insuficiente. De maneira aparentemente “inesperada” começou a enésima crise de governabilidade da história argentina, e ela não foi originada pelo desmoronamento econômico, mas pela prosperidade (agroexportadora), seu contexto internacional está sobredeterminado pela crise inflacionária global e a burguesia ganhadora que desatou a crise dificilmente poderá transformar sua dominação econômica em um sistema integral e durável de controle político da sociedade: sua ascensão é desestabilizadora. De qualquer maneira, não parece estar muito preocupada pelo futuro em geral e, muito menos, com o futuro da “democracia” virtual argentina; sua obsessão é acumular grandes lucros o mais rapidamente possível, seu mundo é o do curto prazo e corresponde com a voracidade niilista dos centros financeiros do planeta.
Enquanto isso, o governo e a totalidade dos grandes meios de comunicação insistem em que a Argentina está diante de “uma grande oportunidade” de enriquecer, graças ao aumento vertiginoso dos preços dos alimentos. O fato de que isso faça mergulhar na fome centenas de milhões de seres humanos não parece motivar neles nenhuma reação ética. Sua pequena “racionalidade” amoral impede que percebam, a partir de uma visão racional mais ampla, a catástrofe para a qual estão se encaminhando enquanto contabilizam seus lucros extraordinários, ao mergulharem no mar agitado da área mais instável da economia mundial, com seus preços ziguezagueantes e suas disparadas financeiras.
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(1), Eduardo M. Basualdo, “La distribución del ingreso en la Argentina y sus condiciones estructurales”, Memoria Anual 2008, Centro de Estudios Legales y Sociales, Argentina.
(2), Jorge Beinstein, “Crisis de régimen en Argentina. Pujas internas en la dirigencia, descontento social”, Le Monde Diplomatique, número 22, abril 2001.
(Por Jorge Beinstein*, CartaMaior, 14/07/2008)
* Economista argentino, professor na Universidade de Buenos Aires. É autor, entre outros livros, de "Capitalismo senil, a grande crise da economia global". Tradução: Naila Freitas/Verso Tradutores